Poemas



    A chegada do Ano Novo

 
O Ano Novo chegou sem pedir endosso,
cercado de luzes e cores em alvoroço
e eu nem percebi.
Estava de joelhos no tapete da sala,
recolhendo de minh’alma rala
os cacos que só eu vi.

Por onde andava eu quando minh’alma,
vulnerável como um recém-nascido,
expôs-se de braços abertos, com calma,
ao aluvião que chegava enlouquecido?

A alma está despreparada para a agressão.
O corpo, sim, mas a alma, não.
A alma, não a prepararam para a guerra.
A alma em si mesma se encerra.

O corpo conta com os cinco sentidos,
que armas brancas  são,
e que, se não o salvam do inimigo,
advertem de sua aproximação.

A alma deixa-se chamuscar.
Entrega-se sem reservas a outra alma
nem sempre disposta a evitar
que algo venha a machucá-la.
No mais das vezes,
é abandonada nua
numa esquina escura
onde aguarda da sorte os reveses.

Assim minh’alma estava
quando o Ano Novo chegou.
Estendeu-me ele a mão cava
e a levantar me ajudou.


Reuniu os cacos da alma e os colou
com a habilidade de um restaurador.
Sem demora a mim ele a entregou,
com os cuidados dispensados a uma flor.

— Ah! Se um corpo sem alma eu pudesse ter.
Um corpo com os cinco sentidos apenas
Não correria o risco de sofrer as penas
nem o perigo de enlouquecer.

Ouvindo o que eu dizia em tom de endecha,
rebateu o Ano Novo minhas queixas:

— O corpo sem alma
é amor que não acalma
é rouxinol que não canta
águia que as alturas não alcança
rio represado que não anda.

— Melhor é correr o risco de sofrer
para evitar o vazio da matéria.
Um corpo sem alma beira a miséria
e corre o risco de fenecer.
Os olhos se negam a enxergar.
As narinas desistem de aspirar.
Os ouvidos não mais escutam.
O palato já não degusta.
A pele, insensível ao frio e ao calor,
Não distingue o amor do desamor.
Um corpo sem alma, na verdade,
é matéria inerte, sem mobilidade,
é um títere abominável, sem vontade.

— Só a alma nos pode dar, com sua sutileza,
o sexto sentido e sua grandeza.





O casarão abandonado


     (Vicência Jaguaribe)


O casarão será fechado?

O casarão,
com suas duas varandas de frente,
será fechado.
Morreu a última das seis irmãs.
O casarão vai ser fechado.

Em cada canto,
Uma lembrança estende os braços.
Atrás de cada porta um desejo...
Um desejo satisfeito.
Outro desejo frustrado.

Nos quartos,
suspiros de amor confundem-se
com soluços de dor.

Nas salas,
conversas em surdina
ou o som do gramofone.

A cadeira de balanço,
que não mais balança,
sem função agora, aguarda pacientemente.
Quem?
Não sabe. Mas espera.

No quintal, as risadas e os gritos
das crianças presas no passado.

Na área lateral, a rede que
continua ali, firme e persistente.
Aberta, como se esperasse chegar
alguém
a qualquer instante.

Na cozinha,
o fogão a lenha, com as cinzas frias.
Nenhuma brasa para reativar as chamas.
Tudo frio.
Tudo úmido.
Tudo sombrio.

As gaiolas abriram as portas
e os dois corrupiões voaram para longe.

Sombras se arrastam
tentando resgatar o passado.

Só o cachorro é presença palpável.
Só o cachorro restou para guardar a casa.
Mas as lembranças e a saudade,
quem as guardará?

Que fazer com um casarão
cujos donos se foram?













Na palma da minha mão


(Vicência Jaguaribe)


Na palma da minha mão,
Cabe, irmão, a felicidade e a alegria
Que, com ousadia, não pedem para entrar.
Na palma da minha mão,
Cabe, irmão, a esperança verde e lustrosa
Que, nervosa, pede licença para falar.
Na palma da minha mão,
Também cabe, irmão, aquele amor
Que, ditador, um dia me deixou aflito.
Na palma da minha mão,
Cabem, irmão, as estrelas do céu e as do mar
Que vão se multiplicar pelo tempo infinito.
Na palma da minha mão só não cabem,
Irmão, a dor da perda e a angústia da solidão.
Como esconder essa dor e essa angústia,
Que com furor por entre os dedos escapam?
No solo se infiltram?
Por baixo da porta vasam?
As paredes escalam?
O ar contaminam?
Os rios e os oceanos emporcalham?
- Sinto muito,
Mas não há como escondê-las.
Só resta incinerá-las
E as cinzas, ao vento lançá-las.



 No cinzento do meio da tarde

(Vicência Jaguaribe)

 











                                        Lá fora o mergulho no cinzento
Do meio da tarde cinzenta e fria.
Meio de tarde de frio de convento
Como se a noite tivesse primazia.

Madrugada chuvosa até o meio dia
pareceu-me. Vesti então a esperança
No quase esquecido casaco de frio
Perdido no mofo das lembranças.

Olho pela janela do gabinete
E meu olhar esbarra sem freios
Num cinzento muro com lembrete:
Toma-se o verde espaço sem rodeios.

Mais lá, à frente, o ponto da aventura.
Vindas dele ignoro as chamadas
Para não enfrentar a chuva dura,
Fria, constante e determinada.

Entre dois prédios-sentinelas
O viaduto diz que um destemido
Aventurou-se além do permitido
E enfrentou a noite sem cautela.

Por necessidade, por intrepidez?
Continuo miopemente a olhar
Até onde chega a minha estupidez.
E para evitar riscos prefiro ficar.

A chuva e o muro — meus desafios —
Instalam-se em mim sem mais demora
E me obrigam a proteger-me do frio
E do desconhecido resguardar-me agora.




 
      O longe-perto


(Vicência Jaguaribe)


Eu sei que estamos por demais distantes
Quase mesmo em países diferentes.
Mas a chuva que aqui cai insistente
É a mesma que aí cai fustigante.

Aqui também a noite se aproxima.
Mas aí, sei, a lareira te anima.
Despreparados somos para o frio
Sem lareira, e o vento em rodopio.

Nossos corpos distantes vão estar.
A grossa chuva pode fustigá-los
O vento frio provocar abalos.

Nossas almas, porém, irmãs no ar
Dançam sorrindo da brisa no embalo
Sem serem de ninguém tristes vassalos.




A Pátria entra em campo


(Vicência Jaguaribe)


é a pátria em calções e chuteiras,
a dar rútilas botinadas,
em todas as direções.
(Nélson Rodrigues)


A Pátria entra em campo.
Não, não falo metonimicamente.
De repente, a entidade abstrata
Se concretiza em verde e amarelo,
Calça chuteiras e cria asas nos pés.
E atira-se de corpo e alma
Numa disputa que é
Graça e desaire
Leveza e rigidez
Sutileza e imposição
Delicadeza e determinação,
Gentileza e agressividade,
Tudo a um só tempo.
A bola é lançada e desfechada,
Bólide inflamado, aparado e conservado
Levado em movimentos precisos.
Cobiçado, tomado e roubado
Para mais uma vez ser recuperado
Em um balé de pernas e pés.
Mais uma vez é desfechado
Mais uma vez é interceptado
Por uma cabeça que, saindo do nada,
Interrompe o bailado de pés e de pernas.
E da cabeça para outra cabeça,
Que o devolve, bailarino, a um pé ágil,
Que o projeta em direção a uma meta,
Facilmente explodida, incendiada e desmoralizada.
É a pátria de uniforme verde-amarelo
Que deslancha e diz a que veio.
E no grito de gol recompõe-se
Empertiga-se, recupera o orgulho ferido
E redime-se das faltas, dos pecados,
Da negligência e da corrupção.
E nasce de novo. De novo em berço esplêndido,
Como heroína. No eterno retorno necessário
Para que o povo continue a caminhada
E não pense em desistir na primeira esquina.






Insônia

(Vicência Jaguaribe)


Exigência básica para ser poeta.
Expulsaram-me da confraria:
Minha condição natural é a sonolência.









A cara da solidão


(Vicência Jaguaribe)


Para Eduardo Lara Resende

Irmão,
A solidão tem sempre
Sua cara e seu jeito
Quer lhe dê quer não lhe dê trela.
O único meio de fugir dela
É nunca olhar-se no espelho.








A morte viaja de avião


(Vicência Jaguaribe)








A morte sofistica-se.
O avião é mais eficiente:
uma única explosão e evita-se
o trabalho estafante de dias.
E o conforto da primeira classe?






(Em 12/05/2010, o Airbus A330-200 explodiu, matando os  onze tripulantes e noventa e dois dos noventa e três passageiros. Um único sobrevivente: um menino holandês de nove anos.)
 
104 menos 1

Explosão em pleno ar. Ela tinha pressa.
Preocupava-a a explosão populacional.
104 menos um. Um menino de 9 anos.
Sem dúvida, um erro estratégico.
(Vicência Jaguaribe)




Juras-de-amor

(Vicência Jaguaribe)




Como saber se as juras-de-amor
São realmente juras de amor?
Não há como saber.
São mais um ato de fé do que um fato.









Explosão de vida


(Vicência Jaguaribe)


Para a Luana, pela rosa do dia das mães.


A rosa só me foi entregue
Quando murcha sem remissão.
Mas o gesto de ofertar
E o jeito de olhar
Obrigaram o tempo a recuar.
E eis explosão da vida.










Limite entre mim e o mundo


(Vicência Jaguaribe)



A sala era o limite entre mim e o mundo.
Fora da sala, o mundo. Com sua inquietude,
sua incompletude e seu nonsense.
Dentro da sala, eu. Eu e meu mundo de fantasia,
com seus mistérios, sua lógica e sua completude.
As varandas eram o limite
entre o mundo de dentro e o mundo de fora.
As varandas de ferro, com seus arabescos.
Quando o mundo de fora invadia o mundo de dentro
havia um movimento de recuo
e eu me trancava em copas
até que os intrusos retornassem a seus lugares.
Aí, então, abria portas e janelas
acendia as luzes e as velas
e mostrava-me sem pudor e sem titubeio,
movendo-me do centro para as margens
movendo-me de dentro para fora.
Então uma nova invasão me levava
a um novo movimento:
que ia de fora para dentro
que ia das margens ao centro.
E nos dois movimentos tracei minha infância.
Um movimento me levava ao mundo de fora.
Outro movimento me levava ao mundo de dentro.





A tragédia anunciada



(Vicência Jaguaribe)


 O homem, cansado de trabalhar.
E o morro, sentinela perdida,
em seu posto de observação.
O homem, cansado de esperar.
E a morte a espreitar de cima do morro.
O homem, cansado de lutar,
com a morte aposta corrida.
Daquela vez a sorte favoreceu-o
E ele atingiu a meta de chegada antes dela.
Não é que ele fosse mais veloz que ela.
Não. É que ela desceu cavando sepulturas.
E, atrás dela, a areia extraída dos buracos,
A inumar os que correram menos que ela.
A morte, comandando avalanches,
movimentos raivosos da natureza degradada.
A morte, dirigindo deslizamentos,
reações incontroláveis da natureza desrespeitada.

A morte rendeu a sentinela e não perdeu tempo.
Ocasião propícia. Pouco esforço ela despenderia.
(Tivera paciência e esperara a conjunção perfeita:
Solo instável, chuva forte e constante
– bela colheita
Moradores teimosos, autoridades burlantes
– fatal receita.)
Foi fácil. No movimento descendente
Tumbas abertas e inumações simultâneas.

No morro não há mais sentinela.
O morro não é mais.
O que ainda é... é a lembrança dela
confundida com o medo e o desespero.









Mais mini-poemas

Fantasia infantil

Campo aberto, sem porteira,
sem vigia ou sensor de movimento.
Únicos limites: os sons da realidade, que
constroem cancelas e instalam vigilância.


Por quem os sinos dobram?

Ouso perguntar-te por quem os sinos dobram.
Não me dês a clássica resposta.
Eles dobrarão tanto por ti que,
quando chegar a minha vez,
a corda, com certeza, terá arrebentado.






A 25ª hora

É a hora em que as nuvens encobrem o sol,
as luzes se apagam e o vento deixa de soprar.
A hora do medo, do desespero – a hora definitiva.
A hora que nega o tempo e a vida.
A 25ª hora é a única hora que realmente existe.




A felicidade

Num recanto do paraíso,
juras de amor trocadas ao vento.
Mas Deus – você não sabia? –
fechou os portões do paraíso faz tempo.





Terra natal

Campos floridos. Rios caudalosos.
Fartura. Fortuna. Povo gentil e generoso.
– Você vive onde mesmo? – No estrangeiro.









Decepção

Sabemos que voar é com os pássaros.
Mas nós insistimos.
Máquinas voadoras inventamos.
O efeito da gravidade zero simulamos.
Damos asas à imaginação.
Até que de cabeça despencamos
No negro buraco da decepção.





A travessia

Toda travessia é imprevisível.
É um tiro no escuro.
Resta-nos fazer figa.
- Mas falta-me o polegar!







A parte que me cabe
A parte que me cabe do amor e do ódio.
A parte que me cabe da alegria e da tristeza.
A parte que me cabe da vida.
Amor, ódio, alegria, tristeza e vida
São todos realidades indivisíveis.


Contato

Deu-se o contato. Abriu-se a brecha.
Tive a impressão de que estaria a salvo.
Pane no sistema. O sinal estava perdido.






Ancorado em porto aberto


(Vicência Jaguaribe)




Apareceste em mim
Quando a vida empacara
E, como chefe de motim,
Em um porto me jogara.

Em um porto seguro, não
- que esses protegidos são.
Foi mesmo em porto aberto
Por ventos e marés coberto.

A cada ensaio de desembarque
Dos ventos um novo ataque
Das marés nova investida
Que mais escavava as feridas.

O barco em que navegavas
Pequeno e com pouco lastro
Lançou-se seguindo o rastro
Dos óbices que a vida lançava.

Arrancaste do traiçoeiro porto
O que em mim não estava morto.
Alimentaste a esperança
Ensaiaste passos de confiança.

A vida, porém, não se cansa.
E soprou em teu ouvido
Um novo ritmo de dança
Rapidamente absorvido.

E teu barco zarpou, de repente,
Em manobra louca e urgente.
E, enquanto o porto aberto eu olhava,
Um marinheiro pássaro perguntava:

Por que lá não te deixaram
Se pretendiam aqui te largar?
Por que não te despacharam
Lá onde está o fim a espreitar?

Eu, olhando-o de soslaio,
Pensei: a vida tem aptos lacaios.
Pra ela trabalham de graça
Até que tudo seja fumaça.



Ela

(Vicência Jaguaribe)


Ela apareceu de repente.
Eu não a esperava.
Tenho perdido o hábito
de olhar o calendário.
Apareceu esplêndida
Num céu sem nuvens.

Ela, só.

Quis alcançá-la enquanto dirigia.
Mas ela, indiferente, escondeu-se
Por trás de uma árvore.

Acelerei.
Mas um prédio
Substituiu a árvore.
E outro prédio mais apareceu.
E a sucessão de prédios
Foi mais rápida do que eu.

Quando, finalmente,
Ficamos frente a frente
E eu pude encará-la,
Tive que dobrar à esquerda.

Constrange-me dizê-lo:
- Perdi-a numa curva do caminho.



A lua sobre as árvores


(Vicência Jaguaribe)


A lua pairando
Sobre as árvores.
A lua pairando
Sobre os prédios.
A lua mais alta do que
Meu amor e meus desejos
Meus medos e minhas frustrações
Minha ansiedade e minha angústia
Minha solidão e minhas decepções.
A lua em sua distância, bela e inacessível.
E eu a chamá-la, a esperá-la.
- Ela virá?
- Não.
A distância é grande
E o único ônibus da linha
Acaba de sofrer uma avaria.
E pensar que, um dia,
Eu já a tive quase à mão
E perdi-a,
Num cochilo fora de hora!




Houve um tempo


(Vicência Jaguaribe)


Houve um tempo
Em que acreditei
Que poderia rimar
Flor com amor
Vida com guarida
Verdade com felicidade.
E até tentei um poema.
Mas a mão emperrou
E a folha continuou em branco.

Hoje, quando não mais acredito
Nem mesmo em rimas,
O poema se fez.
Com um leve toque
Abri a folha virtual
E o poema se lançou com fúria.
Sem flor, sem amor
sem guarida e sem felicidade.
Mas quando me vi obrigada
A convocar vida e verdade
– que, sem poderem combinar em rima,
negaram-se a coabitar –
O poema rolou escada abaixo
E esfacelou-se no último degrau.





A quem vem por aí


(Vicência Jaguaribe)


Ao meu primeiro ou primeira
sobrinho(a) neto(a)



Vem por aí alguém.
Vem por uma estrada
Por onde só ele vem, ou
Por onde só ela vem?
Será menino? Será menina?
Que venha quem vier,
Do jeito que quiser
E quando bem lhe aprouver.
Será uma investida na vida.
A promessa (de)vida
Bem na certa medida.
Seja bem-vindo ou bem-vinda!







Minipoemas

(Vicência Jaguaribe)


A esperança

A esperança é a última que morre.
A minha nasceu prematura
E foi a primeira a morrer.


Sonho

Alguns metros de tule
Um espaço aberto
Passos de balé clássico.
Toca estridente o despertador.


Remorso

Ânsia de vômito
Tontura
Dor de cabeça
- Uma enxaqueca psicológica.


Desilusão

Dançarinos de tango no salão.
Bandônion tocando Por uma cabeza.
Tomba a cabeça do bandonionista.


Dor física

A sensação da impotência.
A certeza da dependência.
Um esgar e um gemido.
A vida suspensa por algum tempo.


A dor psicológica

A dor entalada na garganta
exige uma providência.
Como foi parar na garganta
esta dor que nasceu
em um momento impróprio?
E existe momento próprio
Pra dor nascer e florescer?


O dia seguinte

O dia seguinte...
Há dias para os quais
não deveria haver um dia seguinte:
o da morte de uma pessoa amada,
o de uma derrota ou o de uma decepção,
o do Natal.
O dia seguinte é avassalador
como um tsunami.


A infância

Um à vontade
uma espontaneidade
com tempo marcado
uma eterna brincadeira.

Então, digam por que
existem traumas de infância?


Escárnio

Arrancaste de mim a alegria.
Amputaste-me a vontade de viver.
Decepaste-me a confiança.
O corpo esquartejado
expuseste ao escárnio público.
Ao menos deste aos restos mortais
a bênção de uma sepultura?


Cidadezinha qualquer (no século XXI)

Ruas em alta velocidade.
Cadeiras em frente à televisão.
Boatos nas esquinas.
Motos entrecortando o silêncio.
Grades garantindo janelas e portas.

Eta vida perigosa, meu Deus!


Mão única

Eis que de repente descubro
Haver tomado o caminho errado.
Quis voltar. Foi impossível.
Aquela avenida só tinha uma mão.


A briga do cravo com a rosa

(O cravo brigou com a rosa,
Defronte de minha casa;
O cravo ficou ferido
E a rosa despedaçada.)

A briga do cravo com a rosa
Impressionava a criança que eu era.
Mas a adulta chegou à conclusão
De que a natureza belicosa
É inerente aos cravos e às rosas.

- É a vida! Que se há de fazer?!


Na esquina seguinte

A vida lhe ensinara
A não acreditar
Em juras e promessas.
Na esquina seguinte,
No entanto,
Ela caiu na esparrela.
Mais uma vez.


A morte

Dirigindo na contramão
A vida,
Que tomara umas e outras,
Bate no comboio da sorte,
Onde pousara lúgubre urubu.


A véspera

A véspera é sempre melhor
Do que o dia D.
A véspera é o baile da Cinderela.
O dia D são as badaladas da meia-noite.


A vida

Um presente dos deuses?
Uma combinação aleatória de fatores?
O despertar da consciência?
Não. A vida é, simplesmente,
a preparação para a morte.


Consciência aplacada

Uma muriçoca ronda a sua cama.
Duas muriçocas zinem em seus ouvidos.
Um exército de muriçocas rouba-lhe o sono.

O inseticida existe para isso mesmo.


O medo

A escuridão se insinua
E logo se alastra.
Tenta-se a luz. Inútil.
O interruptor não funciona.


O telefone

Uma discagem.
Resolvemos o problema.
Outra discagem.
Inunda-nos a felicidade.
O triiim estridente
atravessa a treliça do gabinete.
- Aparelho dos infernos!


Casamento

A porta aberta libera a brisa,
Que suaviza cantos e recantos.
Que apara quinas e esquinas.
De repente, bate a porta.
Sensação de sufocamento.
- Te alertaram, cabeça-de-vento!


               Fé

Uma montanha removida.
Um caminhar de olhos cerrados.
Um andar na chuva sem se molhar.
De repente, um relâmpago.
Coordenadas (re)encontradas.


A Ingratidão

a ingratidão – esta pantera –
(Augusto dos Anjos)

A pantera espreita.
Prepara o ataque sorrateira.
A vítima, indefesa, não suspeita.
De repente, a investida certeira.

Necessário ser outra pantera
Para enfrentar uma pantera.











O toque do telefone!

(Vicência Jaguaribe)


- O toque do telefone!
Espalha-se no ar
O espectro do tormento.
Não é do aparelho
Que ressoa o som.
- O toque do telefone!
É de dentro de mim
Que ele surge
É dentro de mim
Que ele repercute.
- O toque do telefone!
E todas as minhas células
Reagem a este som.
- O toque do telefone!
E o toque do telefone
Vai penetrando
Em um trabalho de perfuratriz
O núcleo da alma
O âmago dos sentimentos
O cerne da vida.
- O toque do telefone!
É o eco entre montanhas.
Um dia ainda digo adeus
Com o toque do telefone.
- O toque do telefone!




Prenda-se, então, o ladrão

 (Vicência Jaguaribe)

- Ora, não se perde ninguém para ninguém!
disseste-me, com ar de sabedoria.
Que aconteceu, então, com minha alegria,
que vi ataviando de alguém o pescoço?
Que aconteceu, então, com minha segurança,
que vi enfeitando o braço de alguém?
Que aconteceu com meu entusiasmo pela vida,
que vi, à guisa de anel, o dedo de alguém adornando?
Por acaso, essas prendas não eram
os reflexos da tua vida em minha vida,
que sumiram das gavetas de minha alma?
Se não se pode chamar a isso de perda,
deve-se chamar de roubo?
Prenda-se, então, o ladrão.


De repente

(Vicência Jaguaribe)

De repente o apartamento
ficou grande demais.
O gabinete
desarrumado demais.
Os pés
doloridos demais.
As pernas
lentas demais.
O coração
acelerado demais.
A saudade
sentida demais.
A falta
dolorosa demais.
A solidão
intensa demais.
- A vida
difícil demais.
Sou eu que não tenho
mais força pra navegar?
Ou é a canoa
que tem um furo no casco?
De um jeito ou de outro
o barco vai soçobrar.


 As bem-aventuranças dos sem-amor

(Vicência Jaguaribe)

Bem-aventurados os que têm fome de amor,
Porque virá o dia em que serão saciados!
Bem-aventurados os que choram por amor,
Porque virá o dia em que serão consolados!
Bem-aventurados os que sofrem traição de amor,
Porque virá o dia em que serão justiçados!
Bem-aventurados os que creem em falsas juras de amor,
Porque virá o dia em que encontrarão a verdade!
Bem-aventurados os que calam sua revolta de amor,
Porque virá o dia em que seu verbo será liberado!
Bem-aventurados os que superam a negação do amor,
Porque virá o dia em que serão aceitos!
Bem-aventurados os que pacientemente aguardam o amor,
Porque virá o dia em que ele baterá a sua porta!
Bem-aventurados os que dão tempo ao tempo do amor,
Porque virá o dia em que esse tempo chegará!
Bem-aventurados os que teimam em acreditar no amor,
Porque virá o dia em que sua crença será abençoada!
Bem-aventurados os que não desistem de esperar o amor,
Porque virá o dia em que ele se desvelará aos seus olhos.
Bem-aventurados os que sublimam a dor do amor,
Porque virá o dia em que serão exaltados!

Mas se, por acaso, essas bem-aventuranças não curarem seu mal de amor,
Não tenham dúvida: deem uma cambalhota e comecem a piparotear a dor.
Quem sabe ela não irá doer em outra freguesia!!!
























5 comentários:

Unknown disse...

Professora, gostaríamos de trabalhar alguns de seus poemas no Projeto Poesia do nosso colégio.

Anônimo disse...

Professora e Poetisa Vicência Jaguaribe, saudações!
Belíssimo Blog, li alguns poemas mas volto para me deliciar com o restante! Sou Raimundo Candido irmão da professora Luzia Neide da Uece. Um abraço!

vicência jaguaribe disse...

Cândido, agradeço-lhe por ter lido meus poemas e por os ter comentado. Mande-me seu e-mail para avisá-lo das postagens novas.Um abraço. Vicência.

Erlene Gomes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Erlene Gomes disse...

Maravilhoso o seu poema "Tia, mãe, avó e amiga", Vicência. É muito agradável ler seus textos, sempre bem escritos. Com que intensidade seu texto diz sobre o amor duradouro, da espontaneidade da primeira infância à camaradagem da maturidade. Emocionou-me muito. Parabéns! Abraços. Erlene.