Contos infantis






O flautista de Medellin
 (Vicência Jaguaribe)
Adaptação
do conto europeu
"A flauta mágica." 



A fogueira fora acesa a uma distância segura da rústica habitação de madeira e palha, que ficava nas imediações de uma das principais cidades colombianas. Iluminava algumas crianças e jovens, acampados nas proximidades, que ouviam com atenção um velho índio de longos cabelos brancos a que as chamas emprestavam um toque de irrealidade. Aquelas eram crianças e jovens habitantes de Medellin, cidade colombiana que recentemente libertara-se quase completamente da triste fama de “capital da cocaína”.
            O velho era um dos últimos remanescentes dos muíscas, também chamados  chibchas. Um índio aculturado na infância, que estudara e vivera quase a vida inteira entre os brancos, mas que, agora, com a velhice, voltava às origens. E ele transmitia àquelas crianças e adolescentes um conhecimento que vinha de seus ancestrais, contando-lhes histórias antigas, muito antigas.
Há muitos séculos, muitos séculos mesmo, muito antes de o povo europeu chegar a estas terras, nelas habitavam povos guerreiros, divididos em vários pequenos clãs ou tribos. Esses povos foram chamados de índios pelo homem branco, que invadiu suas terras, destruiu sua cultura e apossou-se de suas riquezas.
Este território, encravado na floresta amazônica, mas com saída para o Mar do Caribe e para o Pacífico, onde hoje fica a Colômbia, era habitado por algumas  tribos, dentre as quais se destacava a dos muíscas. Esse grupo construiu uma civilização rica pela exploração das minas de sal e de esmeraldas e pelo comércio com outros grupos.
Como os demais índios daquela região, os chibchas cultivavam desde tempos imemoriais, tempos tão antigos que não estão mais na memória de ninguém, uma planta cujas folhas tinham propriedades medicinais e revigorantes. Era a coca, que os incas[1] consideravam sagrada e usavam em seus rituais religiosos. Davam-lhe o nome de ‘K’oca’, palavra que, em sua língua, significava sagrado, venerando e único.
Pois bem, os chibchas, como já disse, cultivavam essa planta, que não pode ser confundida com as drogas modernas chamadas coca e cocaína. E mascavam suas folhas, que os revigoravam da exaustão do trabalho diário, dando-lhes mais vitalidade, e amenizavam-lhes a fome. As folhas eram usadas também como remédio para várias doenças e, quando secas, utilizadas nos ritos religiosos e nos funerais — colocadas nas tumbas e santuários.
Ainda hoje as folhas de coca são utilizadas nos rituais dos nossos lavradores que, antes de começar a labuta do dia, mascam-nas, bebem água ardente e pedem aos deuses das montanhas permissão para iniciar o trabalho.”
Nesse ponto, o velho índio calou-se como se estivesse cansado ou triste. As crianças e os jovens esperaram até que ele voltasse à postura anterior e apuraram os ouvidos, pois ele passara a falar mais baixo, como se o que fosse narrar a partir daquele momento lhe fosse doloroso.
Com a chegada dos espanhóis, que destruíram as culturas indígenas para implantar a sua própria cultura, as folhas da coca foram levadas para a Europa. Lá cientistas as estudaram e manipularam até chegarem ao seu princípio ativo puro, que passou a ser usado pelos médicos. Delas também foi extraída a droga alucinógena, como vocês conhecem ou já ouviram falar. Os efeitos dela são mortais para os usuários e têm consequências graves para as famílias e a sociedade.
Conta uma história muito antiga — talvez do início do século XX ou final do século XIX — que, quando o homem branco começou a desvirtuar o emprego da coca, distanciando-a dos usos índígenas, aconteceu um fato extraordinário. Nesta cidade onde vocês moram, Medellin, viviam muitos espanhóis e seus descendentes com mulheres e filhos. Certo dia, chegou um grupo de europeus — a história não diz de qual nacionalidade — que já manipulavam as folhas da coca para fabricar forte droga alucinógena. Compraram uma grande área e nela cultivaram a planta sagrada, para produzir a substância terrível, que seria vendida ali mesmo, mas principalmente na Europa e nos outros países da América.
E os ingênuos moços medellinenses foram induzidos ao vício, o que gerou um grande problema para suas famílias e para a sociedade de Medellin, que viam seus promissores jovens perderem-se no consumo daquela droga. E houve um momento em que a situação escapou ao controle de todos. Aquela comunidade, antes tão próspera, apresentava claros sinais de decadência. O prefeito da cidade, então, ofereceu um grande prêmio em dinheiro a quem conseguisse expulsar da região os infelizes europeus que estavam prestes a arruinar para sempre as famílias que ali habitavam.
Foi então que um índio chibcha, um dos poucos sobreviventes dessa tribo, resolveu concorrer ao prêmio. Era o último grande pajé ou curandeiro da região e tinha poderes mágicos, mais do que se poderia imaginar. Tocava uma flauta de bambu, e sua música maravilhosa era capaz de atrair animais e pessoas. Ele foi ao prefeito, que aceitou sua intervenção. O índio, sem demora, aproximou-se da plantação de coca dos europeus (era um grupo de vinte homens) e começou a tocar sua flauta. Os homens se voltaram procurando o lugar de onde vinha o som. Quando descobriram que era da flauta do chibcha, seguiram-no. A procissão dos ratos europeus cruzou o centro da cidade e encaminhou-se para as montanhas, onde o índio os prendeu em uma caverna. E eles nunca mais apareceram. Devem ter morrido por lá, de fome e de sede.
Cumprida a missão, o flautista foi até a prefeitura receber o dinheiro que lhe haviam prometido. Na companhia do prefeito estavam os homens mais ricos e influentes de Medellin, que, livres dos produtores e traficantes de drogas, negaram-se a honrar a palavra empenhada. Revoltado, o índio preparou uma vingança: foi ao centro da praça principal da cidade e começou a tocar uma música muito suave, que parecia vir de outro mundo. De repente, as crianças do município — todas elas, meninos e meninas; pobres e ricas; pequeninas e grandes — se dirigiram à praça, de onde o flautista as guiou com o feitiço de sua música. De nada valeu o choro e as súplicas dos pais. As crianças nem ao menos olharam para trás. E o flautista as levou para uma terra mágica que só ele conhecia — a Terra sem Males —, onde foram  educadas. Jamais voltaram a Medellin, e os pais nunca mais tiveram notícias delas.”
A fogueira já quase se apagara, quando o velho índio concluiu sua narrativa. Os jovens ouvintes se levantaram e agradeceram pela história, pelas lições que ela transmitia e pelas informações sobre aquela terra, que era de todos eles. Uma terra, antes somente dos índios e, agora, também dos brancos, dos negros, que chegaram ali como escravos, e dos mestiços, que, juntos, lhe dão um belo colorido.


[1] Os incas eram um povo de civilização muito avançada, habitantes do território em que hoje se situam Peru, Bolívia, Chile e Equador.





Era o pirata da perna de pau, do olho de vidro e da cara de mau


(Vicência Jaguaribe)


           
Quando o menino ouviu a palavra pirata pela primeira vez, tinha quatro anos. E foi pela boca da mãe, que cantava uma marchinha de carnaval intitulada “Pirata da perna de pau”, que começava assim: Eu sou o pirata da perna de pau / Do olho de vidro/ Da cara de mau. Ele ficava imaginando quem seria esse tal de pirata. Será um sujeito batata? Ou só contador de bravata? No outro olho terá catarata? Às vezes, achava ver à noite, levitando, como se tivessem vida própria, a perna de pau e o olho de vidro do pirata. Ai, meu Deus! E ficava imóvel como um rochedo com a sensação de medo. Olhem que não era brinquedo.
Mas o certo é que a palavra ficou martelando em sua cachola e fazendo cabriola. De tanto martelar e cabriolar, acabou deixando o menino com dor de cabeça. E, para livrar-se daquela dor insuportável, ele resolveu expeli-la. Então, ela desceu da cabeça para a garganta, depois para a boca, ficou presa entre os dentes e saiu em forma de pergunta:
            — Mãe, o que é um pirata? — Ele tinha seis anos quando fez essa pergunta.
        — Um pirata, meu filho, é uma espécie de bandido dos mares. Antigamente, ele ficava em alto-mar, à espera dos navios que transportavam preciosidades, para os atacar e roubar toda a carga depositada nos porões.
            — E eles não eram presos?
            — Era muito difícil capturar um corsário...
            — Corsário, mãe?
            — Sim, André, corsário é outro nome para pirata. Pois, como eu ia dizendo, ficava difícil capturar um pirata. Eles eram muito destemidos e possuíam armas de fogo. Quando terminavam de roubar os navios e, na maioria das vezes, matar os tripulantes, escondiam-se em uma ilha desabitada, onde enterravam o tesouro roubado. E, às vezes, morriam antes de voltar à tal ilha para resgatá-lo. E o tesouro ficava lá enterrado durante muito tempo. Até que alguém, por acaso, o encontrasse.
            Enquanto a mãe falava, a fantasia do menino escalava as nuvens mais baixas, alçava para as mais altas e perdia-se no infinito até alcançar um solo adequado para florescer.
            — Qualquer dia desses, quando seu pai estiver mais folgado de dinheiro, iremos conhecer Cartagena das Índias, uma cidade da Colômbia, famosa por sofrer ataques dos piratas. Você acredita que tiveram até de construir uma muralha para protegê-la, como se fazia na Idade Média?
            Pronto, bastou essa conversa com a mãe para que os piratas passassem a ser o assunto preferido do André. Lia tudo que encontrava sobre piratas, sobre tesouro de pirata, sobre as regiões mais atacadas por eles. E lembrava-se da música que sua mãe cantava quando ele era pequeno: Eu sou o pirata da perna de pau / Do olho de vidro/ Da cara de mau.
            Finalmente, quando o menino completou dez anos, o pai chegou em casa com três passagens de avião — iriam passar uma semana em Cartagena.
            — Quem sabe, André, lá você não encontra um pirata velho, da idade de Matusalém, que lhe dará o mapa de um tesouro. Talvez muito ouro.
            O André deu uma risadinha safada, como se dissesse Quem sabe, não é, pai?
            O avião passou pelo Rio Amazonas e penetrou no território colombiano. O menino não se controlava de tanta emoção. A aeronave, já perdendo altura para aterrissar, sobrevoou a parte antiga de Cartagena, ainda cercada pela velha muralha, e pousou com tranquilidade.
            Era quase noite quando chegaram ao hotel, que tinha uma bela vista da cidade e do mar. André, cansado e ansioso pela chegada do dia seguinte, foi dormir para acordar cedo. Fariam pela manhã os primeiros passeios na terra dos piratas, como ele passou a chamar a cidade.

            Depois de um dia inteiro de tempestade, com o mar em fúria, finalmente a calmaria. O navio, de bandeira espanhola, transportava uma carga preciosíssima dos metais nobres extraídos do solo e das montanhas das terras que constituíam o império de além-mar da Espanha. No comando da embarcação, um ainda jovem, mas experiente marinheiro, que dirigia aquele barco com competência e autoridade. Era Dom André de Rivera, um filho de família nobre e rica, que tinha decidido, mesmo contra a vontade do pai, ser um homem do mar. Como tinha estudos e era competente, logo alcançou o posto de comandante.
Estavam a meio caminho da costa da Espanha, quando lá, em um ponto ainda distante, o marinheiro gajeiro entreviu uma embarcação. Soltou o grito que informava a aproximação do outro barco, que navegava a velas soltas. Dois minutos depois, o gajeiro informou:
— Navio pirata aproximando-se!
O comandante subiu ao convés. Pôde ver, no alto mastro, a bandeira com a caveira.  Deixara o comando do navio sob a responsabilidade do subcomandante e subira para organizar a reação dos marinheiros caso fossem atacados pelos piratas, o que era quase certo. Ouviu-se, de repente, um grande estrondo: era um tiro de canhão do navio pirata, que quase atingiu a embarcação espanhola. Dom André ordenou a revanche: ouviu-se um segundo estrondo e depois um terceiro e um quarto em resposta. E o navio pirata abordou o barco dos espanhóis. Os marinheiros reagiram, e a luta foi sangrenta. Dominando, por fim, a situação, os piratas transferiram para o seu navio toda a riqueza destinada à Espanha. Dom André, em um movimento rápido e audacioso, libertou-se dos braços que o prendiam, pegou a espada de um de seus marinheiros e correu à procura do chefe dos piratas. Encontrou-o transportando as últimas barras de ouro. Pulou à sua frente com a espada quase ganhando vida própria.. Vazou-lhe  um olho e deu-lhe um golpe muito profundo na perna direita. O chefe dos corsários, já ferido, ainda conseguiu, em uma investida surpreendente, aplicar-lhe um golpe no rosto. Não muito profundo. Mas como doía! Os outros piratas prenderam novamente o comandante e levaram o chefe de volta ao seu navio. Depois, amarraram todos os marinheiros e zarparam. O comandante estava exausto e furioso. Uma única satisfação: o pirata perdera um olho e provavelmente perderia uma perna. Ficaria tal qual o pirata da perna de pau da marchinha que sua mãe cantava quando ele era criança. Ele jamais esqueceria este dia.
            Acordou suado e cansado, ainda com a figura do pirata diante dos olhos. O dia já havia amanhecido. Ele se levantou e tomou banho. Pelo espelho viu a pequena cicatriz que lhe marcava o lado esquerdo do rosto, logo abaixo do olho. Quando ele perguntava aos pais sobre aquela cicatriz, a resposta era sempre a mesma: que era marca de nascença.
Encontrou os dois no restaurante do hotel deliciando-se com o farto desjejum. A mãe olhou-o, surpresa.
— André, o que houve com sua marca de nascença? Parece que ela vai abrir: está avermelhada e tem um pouco de inchaço ao redor.
— Não sei, mãe, mas eu tive um sonho estranho, no qual lutava com uma espada contra um cara muito valente.
— Quem sabe não foi um golpe da espada do adversário — sugeriu o pai em tom de brincadeira.
O menino olhou para o pai com vontade de dizer que poderia ter sido isso realmente. Mas ficou calado.
— Não brinque com coisa séria, querido. — Disse a mãe do André em um tom não muito amigável.
Terminado o desjejum, chamaram um táxi e foram ao primeiro passeio.
Em uma grande praça, dominando o ambiente, a estátua de um pirata — com uma perna de pau, um olho de vidro e uma cara de mau. Enquanto os pais apreciavam o jardim e as fontes que embelezavam o local, o menino subiu até o último degrau da base da estátua. Nessa posição, pôde ver o rosto do homem ali representado. Deu um grito, que, felizmente, não foi ouvido pelos pais. Aquele era o pirata do sonho: o mesmo rosto, o cabelo igual... e, para completar, faltava-lhe a perna direita. E um grande olho azul... de vidro parecia enfeitiçar o André. O menino passou muito tempo contemplando aquele homem de ferro, que dava a impressão de querer dizer-lhe alguma coisa. E realmente ele ouviu sons saindo da boca da estátua, que parecia haver ganhado vida e falava como se desse continuidade a uma conversa, ou respondesse a uma pergunta.
— Todos os tesouros que consegui se acabaram ou ficaram perdidos em alguma ilha distante. Restou-me só um, que guardo dia e noite. Esse ninguém vai me tirar.
E qual é esse tesouro? — Perguntou o menino, sem se importar com o excepcional fato de que aquela estátua falava.
— Esse tesouro é a fama, o reconhecimento de minha existência, a perenidade: ganhei uma estátua em praça pública, e meu nome consta nos livros escolares e em vários documentos expostos em um museu. E não me importo com o que dizem de mim, com a fama de ladrão que me imputaram ao longo da história. Mas sabe que minha fama se deve, principalmente, a este olho de vidro e a esta perna de pau?
                  O menino passou ligeiramente a mão sobre a cicatriz e encarou o pirata bem de frente.
— Nossa! Quer dizer que não tem raiva de quem lhe fez isso? — Perguntou o André com medo de que o sonho que tivera pudesse ter sido real, e o pirata o reconhecesse.
Nesse ponto da extraordinária conversa de uma estátua com uma criança, o menino ouviu a voz do pai chamando-o para conhecer as outras atrações daquela cidade mágica, onde tudo podia acontecer.
André lançou um último olhar ao pirata, que voltara a assumir postura de estátua. De estátua feita de ferro, impassível, altaneira, mas simpática. Depois desse acontecimento tão improvável quanto real, nada mais o surpreenderia naquela terra de muitos mistérios. No exato instante em que teve esse pensamento, sentiu a cicatriz arder como se a ferida estivesse novamente aberta. Passou a mão no rosto e correu para alcançar os pais que já estavam a uma boa distância.
E, à medida que andava, achava ouvir a voz da mãe cada vez mais alto: Eu sou o pirata da perna de pau / Do olho de vidro / Da cara de mau.


         






Sr. Narrador, vá narrar em outra freguesia


(Vicência Jaguaribe)



            Era um tempo em que os animais falavam, e imperava na floresta a lei do mais forte. Todo o vasto território florestal dividia-se em áreas de tamanho médio, cujos donos eram animais fortes e destemidos, que não davam oportunidade aos mais fracos. Assim, os bichinhos pequenos, sensíveis e fracotes tinham de prestar vassalagem aos donos das propriedades demarcadas, isto é, pagar-lhes tributos, obedecer-lhes e prestar-lhes serviços para ter acesso a algumas benesses das terras fartas, todas, naquele tempo, particulares.
            Acontece que, quando menos se esperou, abateu-se sobre aquela região uma grande estiagem. Os lagos, os rios e os reservatórios começaram a secar, tornando mais difícil do que nunca a vida dos pequenos animais. E só se viam bandos, tentando invadir o território alheio, em busca de água e de comida. Aquela situação era muito injusta. Quando foi criado e organizado, o mundo era constituído de uma terra sem fronteiras, à qual todos os animais tinham acesso. Mas, naquele momento, não. Espalhara-se uma teoria científica criada por um sábio pesquisador, que afirmava de pés juntos ser o mundo e os seres que nele habitam o resultado de uma seleção natural, na qual sempre vence o mais forte. Assim sendo, os animais pequenos e fracos estão fadados a desaparecer. Mas aquela teoria começou a incomodar uns poucos donos de terras e os muitos animais que não possuíam recursos suficientes para sobreviver.
Um dia, um pobre cordeiro malhado, de nome Agnellus, viu-se obrigado a invadir as terras de um dos mais poderosos senhores daquela floresta, a fim de encontrar um pouco de água que o mantivesse vivo. Sabia que, nas terras do Sr. Lupus, corria um regato de águas frescas e cristalinas, como devem ser as águas de todos os regatos das histórias que transmitem uma lição. Então, com muita cautela para não ser apanhado, escondeu-se o cordeirinho na vegetação que margeava o curso d’água e começou a saciar a sede.
            De repente, o pobre Agnellus percebeu o Sr. Lupus observando-o fixamente. O cordeirinho deu um salto para trás e, tremendo, foi logo desculpando-se:
            — Desculpe, Excelência, por haver sido obrigado a beber da sua água. É que já não suportava mais tanta sede. Mas, como V. Excelência bem pode ver, eu não contamino com minha sujeira e minha pobreza o seu manancial, pois bebo bem abaixo do ponto em que se encontra V. Excelência.
            — Ora, calma, pequeno cordeiro, tenho o maior prazer em dividir o líquido da vida com você. Não precisa ter medo de mim.
            — Quer dizer que V. Excelência não vai me culpar — a mim ou aos membros da minha família — por sujar a sua água?
            — Não, pode ficar tranquilo. Beba à vontade e volte quantas vezes quiser.
            — Obrigada, Excelência, por sua generosidade.
            Nesse momento, porém, como se houvesse acordado de uma crise de sonambulismo, o lobo balançou o focinho, passou as patas nos olhos e gritou irritado:
            — Um momento! Quem está contando esta história?
            — Sou eu, um novo contador de causos, respondeu uma voz que vinha de dentro da história, mas que não saía da boca de ninguém.
            — E quem foi que mandou você modificar uma história consagrada há séculos, contada e ouvida por inúmeras gerações? Quem lhe concedeu licença para alterar o enredo desta fábula e mudar a minha natureza, isto é, a natureza do herói dos fatos.
            — Ora, Sr. Lupus, diferentemente do senhor, vivo em um tempo novo. Na minha época, ninguém mais acredita na força bruta como uma instância vencedora. Hoje, sabemos que a inteligência, a astúcia e a perspicácia têm mais poder do que a força.
            — Que besteira! Um rato nunca poderá vencer um elefante, como um anão não deverá ganhar de um gigante, nem um cordeiro, de um lobo.
            — Não!? O senhor é muito ignorante! Desconhece a história do mundo. Nunca ouviu falar do pequeno Davi, que derrotou o gigante Golias? Não conhece a fábula do Leão e do Rato? E a da Pomba e da Formiga? Na primeira, o grande e forte Leão é salvo pelo fraco e pequeno Rato. Na segunda, a minúscula e aparentemente insignificante Formiga salva a alada Pomba.
            — Essas histórias são falsas, elas não revelam a realidade do mundo. Quem foi o mentiroso que as narrou?
            — Ora, quem as narrou foi o grande contador de histórias francês Jean de La Fontaine. O mesmo que recontou a sua história, Sr. Lupus. Ele deve tê-las lido em Esopo. Então, se ele e Esopo falsearam a realidade ao contar essas duas fábulas, podem ter falseado ao contar a sua.
— Não diga asneiras, senhor... senhor...
            — Senhor Narrador. Pode me tratar de Senhor Narrador, simplesmente.
            — Pois, Senhor Narrador, que tem medo de mostrar a cara, que se esconde por trás de uma terceira pessoa, o senhor também não pode desvirtuar a natureza dos seres, não. Desde que o mundo é mundo, o lobo simboliza a maldade, a perversidade, os maus instintos. Não se lembra do Lobo Mau, da Chapeuzinho Vermelho? Pois fique sabendo que, na versão original dessa história, não existe aquela barbada de aparecerem os caçadores para salvar a menina e a avó, não. Para o Mestre Perrault, aquele que sabe das coisas, o Lobo Mau devora a vovó e a menina. É a lei do mais forte!
            — Ora, Sr. Lupus, o mundo se transforma, as criaturas mudam. Nada é estável.
            — Mas comigo não vai ser assim, não. Se quiser que eu continue nesta história, deve contá-la nas versões de Esopo e de La Fontaine. Se não a corrigir, eu vou embora, e o universo das fábulas vai perder uma de suas principais personagens.
            — Mas, Sr. Lupus, o mundo moderno é revisionista e tenta ser politicamente correto. Temos que destruir os valores estereotipados, os preconceitos, a intolerância.
            — Comigo não, cara de melão. Odeio essa bobagem de politicamente correto. Isso é um falseamento da realidade.
            — O senhor desconhece a grande Emília, personagem de Monteiro Lobato?
            — Claro que não. Quem desconhece aquela maluquinha? Aquela ali é que não pode ser levada a sério mesmo.
            — Não, senhor. Emília é sábia. Dizem até que ela é o outro eu de Monteiro Lobato. Por intermédio dela, Lobato diz verdades que não poderia dizer diretamente.
            — Ora, mas por que a Emília apareceu aqui e agora?
            — Escute só: quando Dona Benta contou à Emília a fábula O Lobo e o Cordeiro, ela se revelou mais sábia do que a velhinha. Dona Benta disse que aquela fábula expressava a essência do mundo, pois o forte tem sempre razão. Contra a força não há argumentos. Sabe a resposta que Emília deu à Dona Benta?  — Mas há a esperteza! Eu não sou forte, mas ninguém me vence. Por quê? Porque aplico a esperteza.
            — É! Mas a Emília é uma sonhadora. Vive no mundo da fantasia. Não tem prova do que diz, não. Eu já sei que o Sr. Monteiro Lobato tinha mania de mexer no que estava quieto. Não foi isso que fez com a fábula da Cigarra e da Formiga!? Não fez as duas inimigas figadais se tornarem amigas! A história perdeu a graça. E o pior é que muita gente anda imitando-o.
            — Só que com a Cigarra e a Formiga ele fez duas versões: A Formiga Boa e A Formiga Má.
            — Eu sei disso. Mas comigo será diferente. Ninguém me transformará num bichinho bonzinho e delicado, não. Ninguém fará comigo uma história intitulada O Lobo mau e o Cordeiro, e mais uma denominada O Lobo bom e o Cordeiro. Arranje outro animal que se sujeite ao seu revisionismo e ao seu politicamente correto. Deixe de ser preguiçoso, seu narrador, e invente uma nova história — uma história sua — para provar sua tese. Deixe as histórias dos outros em paz. Adeus! Pra esta você não me pega não.





­­­­­­­Onde estão os fantasmas, ou as almas de antigamente?

 (Vicência Jaguaribe)




- Pois era assim no meu tempo de criança, lá no interior do Ceará, em uma cidadezinha com um nome indígena...
            - Já sei, tia, até o nome mete medo – Jaguaruana. Parece mais o som saído da boca de um fantasma: uana... uana... uana...
            - Pois é. E sabem o que significa Jaguaruana? Significa onça preta.
            - E tinha muita onça preta por lá, quando a senhora era criança?
            - Não, né. Eu nunca vi uma onça na minha vida. Mas a cidade tinha outros atrativos naquele tempo. Vocês não podem nem imaginar como era aquela cidadezinha à noite. Acreditem que o motor da usina que mandava luz elétrica para as casas e para as ruas quebrava de vez em quando. E nós tínhamos, durante meses, noites escuras, escuras como breu...
            - Escura como breu!? Que é isso?
            - Já digo, menina perguntadeira. Breu é uma substância muito escura, produzida por algumas árvores. Então, quando a gente quer dizer que uma coisa é muito escura, usa a expressão escura como breu. E, nessas noites, quando não se podia fazer muita coisa, nem brincar na rua nem andar de bicicleta, nem ler, para não estragar a vista, a gente sentava em rodas nas calçadas para ouvir e contar histórias de alma. É o que, hoje em dia, vocês chamam histórias de fantasma. E como havia história de alma naquela cidade! Sabem por quê? Porque era uma cidade com casarões assobradados antigos, com compridos becos mal assombrados. E, como havia também muitas pessoas idosas, que já tinham visto muita coisa nesta vida, aparecia sempre alguém que sabia uma nova história de alma.
            A casa da minha avó – uma casa enorme, com muitos quartos grandes – era um lugar que atraía fantasmas. Todo mundo que dormia lá via alguma coisa de meter medo. É, porque fantasmas gostam de casas grandes, de ambientes escuros. Sabem por quê? Porque alma ou fantasma que se preza tem de meter medo nas pessoas e até nos animais. Se não conseguirem que as pessoas tenham medo deles, ficam sem função, sabem, sem ter o que fazer. E, como é do conhecimento de todo mundo, o medo é filho da escuridão e do desconhecido.
            - É mesmo, tia. Por isso quando a gente vai dormir e tem medo de ficar sozinho no quarto, a mãe da gente deixa uma luz acesa. E o medo vai embora.
            - É isso mesmo. Quem é que tem medo de fantasma durante o dia, quando tudo está claro, quando o sol penetra em cada recanto? Ninguém. Eu até tenho pena dos fantasmas de hoje em dia. Onde eles estão morando, numa época em que os casarões estão desaparecendo para dar lugar aos prédios de apartamento? Quando as noites são iluminadas por milhares de lâmpadas elétricas?
            No meu tempo de criança, por dar cá aquela palha, aparecia uma alma e...
            - Tia, por dar cá aquela palha? Que significa isso?
            - De novo, menina perguntadeira? A gente diz por dar cá aquela palha, quando quer indicar que uma coisa acontece por qualquer motivo e, às vezes, até sem nenhum motivo mesmo. Pois, como eu ia dizendo, quando eu era criança, havia muita alma penada. E elas tinham onde morar. A casa de minha avó era um lugar ideal para fantasma morar. Lá, aparecia de vez em quando uma mulher. E as crianças da família nunca entravam sozinhas, à noite, naquele casarão. Quem já a vira dizia que era uma mulher alta e magra, de longos cabelos pretos, que ficava andando de um aposento para o outro. Parava perto de uma rede e de outra – é, porque, nesse tempo, não tinha essa história de dormir de cama, não, todo mundo dormia de rede –; olhava para quem estava deitado e ia embora. Sabem, minha avó dizia que era o fantasma da mãe dela que vinha visitar a família.
            Também diziam que todos os becos da cidade, à noite, eram visitados por fantasmas. Daí que quando alguém, nas noites escuras, noites sem lua, tinha que atravessar um desses becos, atravessava correndo, metia o pé na carreira. É, porque fantasma não gosta de correr, não. Fantasma gosta mesmo é de lugares quietos, sem barulho e sem movimento. Quem já ouviu falar em fantasma aparecendo em uma festa, em um lugar onde há muita gente reunida? Onde há muita claridade? Não senhor, como já disse, o fantasma é uma entidade que se ambienta bem em lugares escuros e grandes, de preferência, fechados.
            - Puxa, tia! Sabe o que acho? Eu acho que os fantasmas, agora, estão todos nos filmes.
            - Que besteira, primo, fantasma de filme é fantasma de mentira.
            - Sabe que o primo pode até ter razão? Hoje em dia, algumas coisas estão perdendo a razão de existir ou não estão tendo condições de existir. Por exemplo: nunca mais ninguém viu o Saci-Pererê, o Negrinho do pastoreio, a mula sem cabeça, essas entidades que, no meu tempo de criança, não perdiam oportunidade de aparecer. Toda criança via, pelo menos uma vez na vida, uma alma, um lobisomem, uma bruxa. Iiiihhh... bruxa, então, era só ficar olhando para a lua cheia que ela aparecia voando na sua vassoura. Eu mesma vi bruxa mais de uma vez. Hoje em dia, nem se fala mais neles. Sabe o que eu acho? Eu acho que os fantasmas e as entidades mágicas estão ficando com medo de aparecer. Estão invertendo os papéis: em vez de meterem medo, eles é que sentem medo.
            - Como pode ser isso, tia?
            - Ora, o mundo de hoje é cheio de coisas que o Saci Pererê não conhece; de coisas de que os fantasmas ou as almas não gostam. Quer ver: tem muita luz; muita gente; muito barulho; cheiro de gasolina e de óleo; fumaça – olhem, fantasma tem horror a poluição –; casas pequenas ou apartamentos apertados...
            - Apartamento apertado. Engraçado. Falando assim, o apartamento fica mais apertado ainda.
            - Isso mesmo. Vocês podem imaginar um Saci usando uma escada rolante? Uma mula sem cabeça no meio de uma avenida movimentada e toda iluminada? Uma alma passeando num shopping-center? Um fantasma entrando num elevador? Se acontecesse uma dessas coisas, as pessoas iam achar engraçado e iam morrer de rir na cara deles. Aí, então, todas essas entidades ficariam desmoralizadas, perderiam sua função, que é meter medo. Acho que elas pensaram assim: Vamos nos retirar enquanto ainda temos prestígio.
            - Quer dizer, tia, que no nosso mundo não existe mais fantasma, nem mula-sem-cabeça, nem Saci Pererê, nem...
            - Bem, não diria que não existem. Diria que eles agora aparecem menos. E somente algumas pessoas muito especiais é que conseguem vê-los, em situações também muito especiais. De qualquer maneira, ninguém nunca deve baixar a guarda. Quem sabe se alguns fantasmas já não estão se adaptando aos tempos modernos e qualquer dia desses, quando vocês menos esperarem, vão esbarrar com um apertando o botão do elevador do prédio onde vocês moram? Eu vou aproveitar um ditado espanhol para dizer qual é a minha posição quando se trata de coisas sobrenaturais – tipo fantasma, alma, bruxa, lobisomem, Saci Pererê, mula-sem-cabeça, Negrinho do pastoreio e outras coisitas mais: Eu não acredito em fantasmas, mas que eles existem, existem.
            - Gostei desse ditado, tia. Mas o que significa mesmo baixar a guarda?
            - Sua menina perguntadeira! Descubra você mesma o que é que essa expressão significa.




O menino Pedro e o mar


(Vicência Jaguaribe)



        Pedro morava longe, muito longe do litoral. E não achava isso legal. Nunca fora à praia. Tudo o que sabia da praia, sabia pelo que via nas revistas, na televisão e na Internet. E ele tinha muita vontade de conhecer o mar. Mas esse sonho ele não conseguia realizar. Era uma vontade tão grande, que achava ser do tamanho de um elefante, aquele gigante andante. Mas ele também nunca vira um elefante, a não ser nas revistas, na televisão e na Internet. Só sabia que era uma vontade tão grande que não conseguia guardar dentro de si. E ela saía pela boca, pelos olhos, pelos ouvidos e pelas mãos.
         - Como é que pode ser isso?
        - Ora! Ele falava o tempo todo no mar. Vivia procurando gravuras e fotografias em que o mar aparecia. Ouvia certos sons que jurava serem do mar. E sua mão, pegando em um lápis, só desenhava o que ele imaginava ser o mar. Ele até fez uns versinhos falando no mar.
        - Uns versinhos? Eu quero ouvir.
        Era assim:

Não há quem não queira ver,
Não há quem não queira olhar
A maior força que há.
Você quer mesmo saber?
Saiba você: é o mar.

        Um dia, o pai dele prometeu: se ele cumprisse, durante o ano, todas as tarefas; estudasse bastante e não brigasse com a irmã, então, receberia, como prêmio, uma viagem à praia, para conhecer o mar. Espetacular! – pensou o menino.
        E Pedro passou o ano mais bem comportado de sua vida. Estudou tanto, mas tanto, que no final do ano lá estava ele, estrelado, no quadro de honra do colégio. Não mais implicou com a irmã mais nova, e não mais se negou a levá-la ao cinema, à lanchonete e ao shopping. Ajudava a mãe nos serviços da casa – lavava a louça, aguava a grama, tirava o lixo de dentro de casa.
        O pai, satisfeito, resolveu fazer uma surpresa ao Pedro. Alugou, por uma semana, uma casa à beira-mar.
        - Uma semana todinha?
        - Sim, uma semana inteira.
        - Então, o Pedro ficou louco de alegria, não ficou?
        - Ora se ficou! E não parava de falar na viagem. Resolveu até que escreveria um diário, para guardar, para sempre, as impressões daquela viagem.
        E chegou o grande dia. A casa fora alugada com móveis, eletrodomésticos, roupa de cama e utensílios de cozinha. A família só teve que levar roupas pessoais e comida . Saíram de casa de manhã cedo e, às nove horas, chegaram à praia. A casa ficava em um condomínio e não havia nada entre ela e o mar.
        O menino desceu do carro e correu em direção ao mundão de água que se agitava à sua frente. O pai, preocupado com o que poderia acontecer, seguiu-o, mas ficou a certa distância. E presenciou a reação do filho diante do inimaginável. Primeiro, Pedro ficou parado, um pouco afastado da água, como se tivesse medo de aproximar-se. Depois, com os braços bem abertos, rodopiou até ficar tonto e despencar na areia, onde permaneceu alguns minutos com as pernas e os braços abertos. Em seguida, levantou-se e, devagar, bem devagar, foi entrando na água. E ficou correndo pela areia, ora deixando-se molhar, ora distanciando-se um pouco das ondas. Então, com cuidado, como se estivesse medindo o terreno, mergulhou em uma pequena onda que se quebrou no lugar onde ele estava. O menino rolou na areia e deixou que a espuma o cobrisse. Abriu um pouco os lábios e experimentou, com o respeito de quem experimenta um líquido sagrado, aquele que era para ele um novo e estranho sabor.
        Ao sentir a aproximação do pai, correu e abraçou-o chorando e rindo ao mesmo tempo. Quando o pai lhe perguntou o que ele achara do mar, não soube responder com palavras. Sem falar nada, abriu os braços o mais que pôde e rodopiou.
        Quando o sol estava muito alto, o pai o obrigou a ir para casa. Mas foi só sentir que o sol começava a esfriar, que o menino desembestou em direção ao mar, e ninguém conseguiu segurá-lo. Era o mês de janeiro, e a maré estava muito alta. Ele sabia nadar, mas não tinha ideia do quanto aquelas águas eram traiçoeiras. O pai e a mãe correram atrás dele, porém, quando chegaram lá embaixo, já era tarde – viram só a cabeça do menino, lá longe. O pai mergulhou e tentou alcançá-lo. Inútil. Ele não conseguia lutar contra a força da maré. E os pais se desesperaram. E ficaram sentados na areia, chorando, à espera de um milagre. E a noite foi caindo... caindo... caindo devagar... mas era noite de lua cheia.
         Ao descer a noite totalmente, e a lua iluminar as águas e a areia, os animais e as pessoas, as casas e as árvores, primeiro a irmã, depois a mãe e, por último, o pai viram... Viram, mas não quiseram acreditar... Viram o milagre acontecendo... lá longe, somente um pontinho escuro movimentando-se em alta velocidade. No começo, não distinguiram o que era. Depois de alguns minutos, não era mais um pontinho escuro, era uma pessoa. Mas como uma pessoa podia movimentar-se com tanta velocidade dentro da água, sem estar em um barco!? Mais alguns minutos, e todos viram o inacreditável – aquele pontinho escuro, aquela pessoa que eles pensavam que se movimentava por conta própria, era o Pedro... e, por mais que parecesse improvável, era o Pedro montado em um golfinho branco. Realizara-se o milagre!
        O menino desceu do golfinho, que não lhe deu tempo de dizer muito obrigado. Numa reviravolta, lançou-se no ar, desceu até as águas e desapareceu.

        A família, em festa, não parava de abraçar-se e beijar-se. E o Pedro começou a contar a sua aventura.
        - Mergulhei e não sabia que a água era tão funda e tão violenta. Quis me equilibrar, mas não consegui. Tinha certeza de que ia morrer. Então, senti que era puxado por alguma coisa, mas não sabia o que era. Estava desmaiando. Quando abri os olhos, me vi em uma praia, deitado em uma grande pedra. E, perto da pedra, vários golfinhos faziam uma festa – pulavam, mergulhavam, ficavam só com a cabeça fora d’água, como se quisessem conversar comigo. Quando me senti melhor, pulei na água. Um dos golfinhos se aproximou de mim e deixou que eu o montasse. Então, seguido pelos outros, me trouxe até aqui como vocês viram.
        Desta vez os pais não puderam dizer que aquela era uma fantasia do Pedro, como sempre diziam sobre as histórias que o menino contava. Eles o haviam visto montado no animal, que o trouxera até bem próximo da areia. Mas daí a pouco, quando subiram para a casa, os dois ficaram pensando: cada um com seu pensamento, mas pensando a mesma coisa: Será que eu vi mesmo o que acho que vi? Não foi ilusão de ótica? Não foi a luz da lua que me confundiu? Acho bom não contar essa história a ninguém. É uma história ridícula!
      - Os pais do Pedro pensaram assim? E a irmã?
      - A irmã pensou diferente. Enquanto os pais tinham aqueles pensamentos próprios dos adultos, o Pedro contava para a irmã, mais uma vez, a sua extraordinária aventura. E ela estava encantada com todos os detalhes, com os pontos que o Pedro aumentava a cada vez que lhe contava aquele conto. Nem ela nem o irmão tinham medo de entregar-se à fantasia e de acreditar no extraordinário. Também não se importavam com o juízo que os outros poderiam fazer daquela belíssima história.







A história – quase saga – da Kelly

(Vicência Jaguaribe)

I. O antes da Kelly


        Os pais dela foram um casal de poodle que morava na casa da tia Inês, uma tia-avó dos meninos que a adotaram. Um dia, o poodle macho se encantou com a beleza e a doçura do poodle fêmea, cadela que, além do mais, era muito charmosa. O poodle fêmea, por sua vez, também caiu de amores por aquele poodle simpático, gentil e elegante, que todas as manhãs colhia uma rosa para ela. Resultado: os dois começaram a namorar e casaram, segundo as leis dos cães.
        Num dia muito bonito e claro, uma nuvem branquinha divertia-se com o vento. Eles brincavam de fazer e desfazer bichinhos no zoológico do céu. Justo no momento em que estavam desenhando um poodelzinho branco, pararam em frente à casa da tia Inês – o vento deixou de ventar por alguns segundos, e a nuvenzinha sustentou a última forma de que se revestira: a de uma cadelinha poodle, toda branquinha. Nesse momento, a Kelly nasceu.
        A Kelly passou alguns dias com os pais e depois, como costuma acontecer nas melhores famílias de caninos, foi oferecida, pelas três netas da tia Inês, a três primos que eram loucos por um cãozinho de estimação.


II. Kelly – A Chegada


        Ela agora já tem uns cinco aninhos. Se conhecesse neve, eu diria que ela é branca como a neve. No entanto eu não conheço a neve, por isso direi que ela é da cor de uma nuvem. Mas nuvem de um dia que não está ameaçando chover.
        Foi morar na casa de três menininhos, os três primos das netas da tia Inês: o Álvaro, o Ivan e o Artur. Foi uma festa no dia em que ela chegou. Mas havia uma preocupação na cabeça dos meninos: a mãe deles estava viajando e não sabia da Kelly.
        E se a mãe deles não aceitasse a Kelly dentro de casa? Onde ela iria morar? O jeito era esperar a chegada da mãe e torcer para tudo dar certo. Então, o Álvaro, o mais velho dos três meninos e o que tinha as melhores ideias para resolver as situações difíceis, sugeriu aos irmãos:
        - Só tem um jeito – educar a Kelly antes da mamãe voltar.
        - Mãos à obra! – Gritaram os outros.
        E começaram, naquele mesmo instante, a mostrar à cachorrinha onde fazer cocô e xixi; a ensinar a não subir nas camas e nos sofás; a não puxar os tapetes dos banheiros; a não latir à toa, etc.
        E os meninos tentaram, e tentaram, e tentaram... e a Kelly não estava nem aí para os ensinamentos. Também os meninos, se ensinavam por um lado, desensinavam pelo outro. Passavam o dia com ela nos braços, beijando-a e fazendo falinha; e ainda estimulando-a a latir a qualquer barulho. Resultado: a Kelly ficou um bebê-cachorro muito do mal-educado e safadinho. Sabem como é!
        Mas aproximava-se o dia de a mamãe chegar, e os meninos começaram a ficar nervosos, tão nervosos que não conseguiram dormir direito na véspera da chegada.
        Pronto! O carro estacionara na garagem! A mamãe chegara! Os meninos não sabiam se se alegravam ou se ficavam tristes. Abraços e beijos. A mamãe abriu a mala e distribuiu os presentes.
        - Ivan! Onde você está? Não quer o presente que lhe trouxe?
        Procurou-se o Ivan e nada. O Artur, já sabendo o que o irmão fora fazer, disse abraçando a mãe:
        - O Ivan foi buscar um presente que compramos para você. Espero que goste!
        Lá vinha o Ivan, saindo da cozinha, com algo enrolado em uma toalha. Só que esse algo era um algo mexedor e latidor. Colocou-o com muito cuidado nos braços da mãe, que, assustada com os movimentos e o latido do presente, largou-o no chão.
        Vejam vocês! A Kelly não saiu correndo. Ficou sentada aos pés da mamãe, olhando-a com aquele olhar de quem quer bem. Foi amor à primeira vista, pelo menos da parte da cachorrinha.
        A mamãe ainda estava sem fala – meio assustada, meio surpresa e meio raivosa. Deveriam ter combinado com ela! O Álvaro, então, aproximou-se, pegou a cachorrinha e depositou-a nos braços da mãe, que a segurou muito sem jeito.
        - Ela se chama Kelly e é muito educadinha.
        - Sim, eu sei!
        Quando sentaram à mesa para jantar, a Kelly deitou-se aos pés da mamãe, que lhe deu um pedaço de presunto. Foi um grito só:
        - Ela só come ração! Não lhe dê presunto!
        A mamãe piscou para a cachorra, que devolveu a piscadela com um latido carinhoso e com uma poça de xixi. Só o tempo diria como seria aquela relação.


III. Kelly – um amor de cachorrinha


        A Kelly, aquele poodle branquinho como uma nuvem que brinca no céu em dia que não quer chover...
        aquela nuvenzinha branca que chegou bebê na casa dos três irmãos – Álvaro, Ivan e Artur...
        aquela cachorrinha acabou por conquistar a mãe dos meninos. E nem demorou tanto tempo assim.
        Logo de chegada, encheu de felicidade a Neném. Não, a Neném não é o bebê da casa. Não, lá nem tem bebê, a não ser a Kelly. A Neném é a cozinheira da família, que ama cachorro, pequeno, grande, preto, branco, malhado... isso mesmo, de todo tamanho, cor e raça. E ama também os três meninos, que ajudou a criar. Mas tem um carinho todo especial pelo Ivan, o do meio, sabiam?
        Para falar a verdade, a conquista que deu mais trabalho à Kelly foi a da tia dos meninos – a Titiinha, como eles chamavam quando eram pequenos. Ainda hoje a Titia guarda da Kelly a distância recomendada por... por ela mesma.
       A Kelly nunca aprendeu o que os meninos lhe ensinaram. Continua a fazer cocô e xixi no meio da casa, a mexer nos tapetes dos banheiros e a fazer outras coisinhas que uma cachorrinha que se diz educada e de família não faz. E não pensem que é pouco inteligente. Não! Ao contrário, é muito é esperta.
        Vocês precisam ver o que acontece no dia em que ela vai à clínica tomar banho – é sempre na quarta-feira. Pois parece que adivinha a hora de ir. Quando vê a Neném entrar no quarto onde a mamãe trabalha, ela corre. E esconde-se no estreito espaço entre a cadeira do computador e a parede, na esperança de ouvir a ordem de deixa, Neném, não precisa levar hoje, não. Só que essa ordem nunca é dada.
        O amor da Kelly pela mamãe cresce todo dia. Cresce mais do que ela, que, sendo poodle, é pequenininha mesmo. Quando a mamãe volta do trabalho, a cachorrinha fica em festa, pulando e rodando em torno dela. Aí, pronto, não quer outra vida: segue a mamãe aonde ela for, até ao banheiro.
        A Kelly é como uma criança, mesmo. Gosta de brincar, antes de qualquer outra coisa. Enquanto a mamãe trabalha no computador, ela vai buscar o tapete do banheiro; leva-o aonde está a mamãe e fica batendo nela até que ela se disponha a brincar. E qual é a brincadeira? Ela prende o tapete entre os dentes, e a mamãe puxa na outra ponta.
        Ela brinca até com a comida. Se lhe servem ração, primeiro espalha as bolotinhas comestíveis pela casa, para depois comê-las. Se a mamãe lhe dá um biscoito, um pedaço de carne, de presunto ou de chocolate – isso tudo contra a vontade dos meninos –, ela antes de comer arrasta tudo para perto do sofá e fica brincando um bom tempo.
        O mais engraçado nas reações da Kelly acontece quando a gente briga com ela. Sabem o que ela faz? Não, nem foge, nem baixa a cabeça, nem late, nem agride. Ela deita-se de costas e abre as perninhas para que a gente lhe coce a barriguinha.
        A Kelly é um amor de cachorrinha! Igualzinha à do Vinicius de Moraes. Vejam só:

A Cachorrinha

Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de cachorrinha!

Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
Do que a tua barriguinha
Crivada de mamiquinha?
Pode haver coisa no mundo
Mais travessa, mais tontinha
Que esse amor de cachorrinha
Quando vem fazer festinha
Remexendo a traseirinha?

        Vocês gostariam de ter uma Kelly?


IV. Kelly – as suas pequenas aventuras


        O pequeno poodle dos três irmãos, já com três anos, parecia, naquele momento, mais com um novelo de lã branca do que com uma nuvem. Era a opinião da titia. O Artur, que entendia tudo ao pé da letra, ficava preocupado: E se alguém puxar o fio da meada!!! E a mãe insistia:
        - Artur, é só uma comparação. A Kelly é um animal, e o novelo de lã é uma coisa. A titia achou os dois parecidos – ambos são brancos.
        O menino ficava calado, mas lá dentro de sua cabeça, lá nos seus pensamentos, dizia só para ele mesmo: Não sei não, mas, se a Kelly é uma cachorra, por que então chamar ela de novelo de lã!?
        Passear de carro era uma das satisfações da Kelly. E gostava mais ainda se o carro era um buggy e se o passeio era à beira-mar.
        A família tinha uma casa de praia, onde passava os fins de semana, os feriados e as férias. Nessas viagens para o Morro Branco, o pequeno novelo de lã branca era o primeiro passageiro a entrar no carro. Quando o carro parava no jardim, a cachorrinha soltava-se na grama, corria de um lado para o outro, como a festejar a liberdade recém-conquistada.
        Em vez de tomar banho no mar aberto que se descortinava a perder de vista em frente à casa, a família preferia caminhar (os mais dispostos faziam isso) ou ir de buggy até a Barra Nova e mergulhar nas águas do rio Beberibe, alguns metros antes de seu encontro com o mar. Aquele ponto é o limite entre os municípios de Beberibe e Cascavel. Ao baixar a maré, o rio também baixa e permite que as pessoas atravessem para o lado de Cascavel a pé. Ao subir a maré, o volume de água do rio aumenta, e o banho fica muito agradável: a temperatura da água sobe, e a correnteza ganha mais força. Quando o rio oferecia essas condições, os meninos faziam a Kelly entrar na água, embora não fosse essa a idéia que ela tivesse de divertimento. Enquanto estivesse na água, ela ficava de um braço para o outro. Quando conseguia fugir daquele divertimento que para ela não devia ter graça nenhuma, a impressão que se tinha é que ela passara por um tratamento de emagrecimento e deixara toda a gordurinha dentro do rio. Fora das águas, ela começava o ritual de enxugamento, que consistia em lambuzar-se de areia e sacudir-se, lambuzar-se de areia e sacudir-se, lambuzar-se de areia e sacudir-se, até sentir-se enxuta.
        A Kelly é uma garotinha ciumenta, e esse ciúme, ela o demonstrava principalmente no Morro Branco, quando os primos dos seus donos (podemos dizer que cachorro tem dono? Não é politicamente incorreto?), o Gabriel e a Débora, apareciam por lá. Os meninos não podiam aproximar-se dos primos, e do Álvaro, em especial. Ela avançava neles e, se não aparecesse alguém, poderia atacá-los. Enquanto eles estavam por lá, ela ficava de guarda, em posição de defesa. Ou de ataque?
        O ter medo é uma das características da Kelly, que ela demonstrava com muita frequência no Morro Branco. Era algo de que não tínhamos conhecimento, nem sabemos se é próprio da raça poodle. Um dia, observamos a valente Kelly, a mesma que late para estranhos e que ameaçava, por ciúme, atacar o Gabriel e a Débora, essa mesma Kelly, repetindo um movimento de ida e de volta, ou melhor, de avanços e recuos. Ela tentava aproximar-se de algo, dava meia-volta e corria. Repetiu essa operação várias vezes. Quando fomos ver o que estava acontecendo, constatamos que a Kelly estava com medo de um sapo. Em outras ocasiões, observamos o mesmo movimento com outros bichos: siri, besouro e borboleta, por exemplo. E até com objetos inanimados.
        Pois é, quem não conhece a Kelly precisa conhecê-la. Diferentemente de uma criança, que, na medida em que vai crescendo vai perdendo a espontaneidade e, portanto, a graça que tinha em pequena, a Kelly não corre esse risco. Porque não se curva às exigências da sociedade, não se policia, parece que não cresce. As pequenas graças que ela fazia quando bebê continuam a provocar o riso, como se fossem ocorrências novas. Além do mais, como diria o Artur, ela é imprevisível.

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