Retratos guardados na memória


A outra Gabriela
(Como a arte imita a vida ou a vida imita a arte)


(Vicência Jaguaribe)



Tão bom ir ao bar, passar entre os homens.
A vida era boa, bastava viver.
Quentar-se ao sol, tomar banho frio.
Mastigar as goiabas, comer manga espada, pimenta morder.
Nas ruas andar, cantigas cantar, com um moço dormir.
Com outro moço sonhar.

(Gabriela cravo e canela. Jorge Amado.)




            Quando li, pela primeira vez, Gabriela, cravo e canela, ainda nos meses iniciais do Curso de Letras, tive a impressão de que a Gabriela não me era estranha. Havia algo de familiar naquela mulata, que tinha o cheiro do cravo e a cor da canela.
Lia no ritmo da compulsão – lia em casa, lia no ônibus, lia na faculdade (entre uma aula e outra; no intervalo da merenda; nos cinquenta minutos de aula, com o livro metido em mil disfarces, enquanto o professor escrevia no quadro ou perdia-se em elucubrações de ordens variadas). E, quanto mais lia, mais tinha a certeza de que conhecia aquela mulata, com seu riso tímido e claro, sua cor queimada de canela, seu perfume de cravo, seu calor, seu abandono.
            Há uma passagem do romance em que a bela mulata rumina o ciúme que tinha dela o dono do bar Vesúvio:

Seu Nacib tinha ciúmes, era engraçado. Que pedaço tirava se Josué lhe tocava na mão? Se seu Tonico, beleza de moço!, tão sério na vista de seu Nacib, nas suas costas tentava beijar-lhe o cangote? Se seu Epaminondas pedia um encontro, se seu Ari lhe dava bombons, pegava em seu queixo? Com todos eles dormia cada noite, com eles e com os de antes também, menos seu tio, nos braços de seu Nacib.

            No momento em que li essas linhas, liguei as duas pontas do mistério – Gabriela me lembrava a Lili, persona muito ligada à minha família, assídua frequentadora de nossa casa. Conhecida como a Lili do Chico Sabino (seu pai) ou a Lili da Guilhermina (sua mãe). Não era propriamente no físico que a Gabriela me lembrava a Lili, embora esta ostentasse como aquela a mulatice na cor, no ondulado dos cabelos, nas feições de mestiços traços. O que me levava a fazer uma relação entre as duas mulatas – a Gabriela da ficção e a Lili da vida real – era a maneira espontânea, ingênua e franca de ambas verem e interpretarem o mundo. Era o amoralismo que regia o comportamento e as ações das duas, principalmente no que se relacionava às questões amorosas.
            Talvez não fosse fora de propósito lembrar que a amoralidade, ou o amoralismo, diz respeito não à contrariedade das leis morais vigentes, por atitudes ou palavras intencionalmente indecentes, com o objetivo de afrontar a sociedade – isso é imoralidade. A amoralidade, ou o amoralismo, concerne à conduta humana que não se pauta pela moral não por agressão ao status quo, mas por ignorância, ingenuidade ou ainda pela indiferença aos parâmetros morais, indiferença que se apresenta fundamentada. Podemos dizer que a nudez do louco em praça pública configura um comportamento amoral, enquanto a mesma atitude, partindo de um jovem saudável, em protesto porque foi proibido o acesso de alunos de bermuda às instalações escolares, configura um ato imoral.
Como a Gabriela, a Lili sentia-se livre para amar a quem lhe desse na telha. Embora criada em uma sociedade cristã e católica, nunca assimilou a relação sexo/pecado defendida pelo Catolicismo. Seu primeiro caso amoroso deu-se com um homem casado, que fora instalar a primeira usina elétrica de sua cidadezinha, lá pela década de quarenta. Dessa relação nasceu-lhe uma filha, a única que criou. Teve muitos outros filhos que, mal nasciam, eram entregues a pais adotivos. Nunca ouvi a Lili referir-se a esses filhos com algo mais do que curiosidade. Era como se dar um filho fosse a coisa mais natural do mundo. E não era porque lhe faltasse amor ou compaixão. Não, ela era uma boa mulher, compassiva e afetuosa. Somente não fora atingida por certos valores culturais.

                 Enquanto pôde, ganhou a vida lavando roupa. Ouvi-a dizer mais de uma vez que lavar roupa no rio era o que mais gostava de fazer na vida. Nem todo mundo sabia, no entanto, que aquelas idas ao rio eram... — não, não eram desculpas, pois ela não precisava desse expediente — eram ocasiões de encontrar o amor do momento.
          Quem leu a obra de Jorge Amado, há de lembrar-se da ingenuidade, da simplicidade, da espontaneidade e da franqueza da Gabriela. Essas qualidades, juntamente com o desconhecimento das convenções e dos valores ditados pela sociedade e com o anseio de continuar livre, para fazer o que o desejo e o instinto ditassem, quase a levaram a rejeitar o pedido de casamento de seu Nacib e, depois das núpcias, a achar que seria melhor não haver casado.


Quando lhe dera a notícia, quando pedira sua mão, ela ficara a pensar:
     - Por que, seu Nacib? Precisa não...
     - Não aceita?- Aceitar, eu aceito. Mas, precisava não. Gosto sem isso.

      Era ruim ser casada, gostava não...  Do que gostava, nada podia fazer... Roda na praça com Rosinha e Tuísca, não podia fazer. Ir ao bar, levando a marmita, não podia fazer. Rir pra seu Tonico, pra Josué, pra seu Ari, seu Epaminondas? Não podia fazer. Andar descalça no passeio da casa, não podia fazer. Correr pela praia, todos os ventos em seus cabelos, descabelada, os pés dentro d'água? Não podia fazer. Rir quando tinha vontade, fosse onde fosse, na frente dos outros, não podia fazer. Dizer o que lhe vinha na boca, não podia fazer. Tudo quanto gostava, nada disso podia fazer. Era a senhora Saad. Podia, não. Era ruim ser casada.

            Observe-se que, na cabeça de Gabriela, viver maritalmente com seu Nacib era algo tão natural que dispensava o ato oficial do casamento. Para ela, o simples gostar dele já satisfazia os requisitos necessários para viverem juntos. Aquela mulata sensual não fora nem de leve contaminada pelas imposições sociais. Ela estava virgem do vírus civilizatório. Era, ainda, puro instinto e sentimento. O casamento cercearia, ainda, sua liberdade, o que lhe era inadmissível. Por tudo o que a oficialização do casamento tiraria dela – a alegria, a liberdade de ir e vir, de conversar com quem quisesse, de falar o que tivesse vontade, de andar como quisesse, de deitar com outros homens –, ela chegara à conclusão de que “Era ruim ser casada”.                                                        
            A Lili nunca casou, nem nunca botou dentro de casa um companheiro. Mas também nunca esteve sem um amor. E deu ao mundo tantos filhos quantos quis, ou quantos lhe permitiu o acaso, o destino ou algo que o valha.
            Alguns valores que a Lili cultivava podem demonstrar o quanto ela estava distante dos ditames da sociedade em que vivia. Na verdade, embora houvesse crescido em uma sociedade proibitiva e castradora, permanecera sempre à margem dela, talvez por causa de sua ingenuidade proverbial. Trago na memória algumas situações e declarações que mostram essa ingenuidade.
            Quando foi instituída, pelo Governo Federal, a aposentadoria para os idosos, ela ainda não havia completado a idade exigida para requerer o benefício. Essa aposentadoria passou a ser uma idéia fixa na cabeça dela; só falava no assunto. E, como já disse alguém, as pessoas podem não ter ideias, mas não podem viver com uma única ideia, fiquei com medo de a Lili enlouquecer. Pois bem, quando ela conseguiu o aposento (é assim que as pessoas mais humildes se referem à aposentadoria dos velhos), passou a dizer: Eu queria tanto o aposento dos velhos, mas agora que tenho nem ligo mais.
            Outro episódio que expressa sua ingenuidade diante das coisas aconteceu entre ela e a sobrinha Ana Maria. Gozavam as duas a chegada do Aracati, que, sem falhar um dia, passa refrescando as cidades que se distanciam do mar. Jaguaruana, aonde ele chega entre três e quatro horas da tarde, acolhe-o com alívio e alegria. Bem à vontade no frescor da brisa, a Lili olhou para a Ana Maria:
            - Ana, tu gosta de mim?
            - Gosto, Lili, gosto muito.
            - Agora pergunta se eu gosto de tu.
            A Lili era conhecida também como a Veia. Quando alguém lhe perguntava a idade, ela fazia questão de dizer que era velha: Eu sou muito veia. Sou mais veia do que fulano e sicrano. Veja os meus cabelos como já tão branco! E soltava os longos cabelos grisalhos, depois brancos, presos por grampos ou por um pente. A Veia tinha loucura por roupa estampada. Quando se ia dar-lhe um vestido, já se sabia – a fazenda havia de ter uma estampa bem alegre, e a combinação devia ser de cor, não branca.
            Ela devotava grande amizade à minha mãe. Quando uma de minhas sobrinhas – a Liv – casou, mandou pedir um retrato da menina vestida de noiva. Como achava a Liv muito parecida com a mamãe, queria ter um retrato dela para se lembrar da amiga, que já morrera.
            Uma última referência à ingenuidade da Lili. Assistindo aos programas de televisão, ela acabava por alimentar uma paixão platônica por certas figuras televisivas e falava nelas com frequência. Quem se lembra do famoso J. Silvestre? Pois foi um de seus ídolos.
          
          Há muitos anos, a Lili viu-se impossibilitada de ir ao rio lavar roupa. Sua vida ficou mais triste, as águas correntes do Jaguaribe levaram sua juventude, sua saúde, seus amores e sua alegria. Há uns poucos meses, a Lili – a nossa Gabriela – empreendeu a sua viagem. Ao ser transportada por Caronte a seu destino final, deve ter confundido as águas do Aqueronte com as familiares águas do Jaguaribe. E, ao pedir licença a São Pedro, deve ter ouvido, como Irene, a de Manuel Bandeira: Entra, Lili. Você não precisa pedir licença.

04/07/2009
              





Chico Nogueira



(Vicência Jaguaribe)



            Havia em Jaguaruana um enfermeiro prático, nosso parente. Aprendera alguns fundamentos de enfermagem — como aplicar injeção, fazer curativo e até diagnosticar as doenças mais comuns e curá-las — com um farmacêutico formado, irmão de minha mãe. Tinha uma mão leve para injeção, para curativo e era muito prestativo. Estava sempre à disposição de quem precisava, pudesse pagar ou não.
            Era casado com uma parenta, que fora noiva de outro, para quem servira de pombo correio e por quem sempre morrera de paixão. Só foi o noivado terminar — não se sabe se ele deu uma mãozinha para o desfecho — e ele aproximar-se da ex-noiva, que, apesar de não amá-lo, lhe tinha amizade.
            Ela era a Maria Nogueira, fina modista, cobiçada pelas pessoas mais endinheiradas da terra. Com o marido, que aprontava, tinha paciência até certo ponto. Às vezes, perdia a tramontana e lhe dizia umas verdades. Trabalhava dia e noite para garantir o sustento da família, uma vez que o marido vivia basicamente do que ganhava na ajuda ao farmacêutico e no atendimento domiciliar para injeção e curativo. Uns dias tinha dinheiro, outros dias, não.
            Ele era Francisco Nogueira Barbosa, conhecido por todos como Chico Nogueira. Muito branco, de cabelos castanho-claros e olhos azuis, só andava depressa, ou melhor, quase correndo, e não parava muito tempo em nenhum lugar. Tinha sempre alguma coisa para fazer. Prestativo, caridoso e engraçado, era também muito devoto, devoto de missa diária ou quase. Tinha, porém, um vício terrível: bebia muito e, quando isso acontecia, o que era muito frequente, perdia o controle e fazia besteira em casa e na rua. E havia uma peculiaridade na relação dele com a mulher: só almoçava em casa quando a comida era comprada com seu próprio dinheiro. Não comia, por mais que a mulher e os filhos chamassem, se o dinheiro para comprar a carne, o arroz e o feijão tivessem saído do bolso dela.
            Demonstrava preferência por duas das filhas mais novas — a Maria José, que ele tratava por Mizeca — e a Maria do Carmo — para ele, a do Carmém ou Meíta. Um dia comprou uma lata de doce de goiaba e levou para casa. Chamou as duas meninas e deu-lhes todo o doce, enquanto os outros filhos ficaram olhando, com água na boca.
            Em um dos resguardos da mulher, cortou os punhos da rede em que ela estava deitada e a pôs no chão. Foi preciso a intervenção de minha avó materna, que o expulsou de casa e disse que só voltasse quando se curasse da bebedeira. É, da velha Otília ele tinha medo! Mas fora da bebida, tratava a mulher muito bem. Gostava, no entanto, de dizer que ela era muito orgulhosa: Deus sabe o que faz, comadre Vicência (eu sou madrinha de um dos filhos dele), se Maria Nogueira fosse rica, não pisava no chão.
            Era extremamente caridoso e frequentava o pequeno e precário bordel da cidade, para tratar das meninas — assim ele chamava as prostitutas —, quando estavam doentes. E até lhes comprava remédio quando lhes faltava dinheiro. A esposa tinha um ciúme danado das meninas. Talvez não fosse nem ciúme, mas raiva porque, às vezes, o pouco dinheiro que ele ganhava, ao invés de trazer para casa, gastava com as mulheres. Ele explicava que não tinha nada com nenhuma delas, mas não ia deixá-las morrer à míngua.
            Um belo dia, ele empregou-se no Sesp e foi trabalhar no Posto de Saúde da cidade. Aí a situação melhorou. Aos poucos, deixou de beber, de modo que, quando o  transferiram para Fortaleza, onde ficou até aposentar-se, já não tinha esse vício.
            O casal teve onze filhos, cinco homens e seis mulheres. A maioria concluiu o Curso Médio; alguns são professores; há dois bancários e uma Promotora Pública. Todos encaminhados na vida.
            A cidade confiava nele e nos seus serviços. Num lugarejo sem médico, nas décadas de cinquenta e sessenta, ele quebrava todos os galhos que se possa imaginar — até parto fazia.
            Teve um final de vida tranquilo, embora se queixasse de depressão. Mas recebeu dos filhos ajuda financeira e carinho até o fim. Morreu dormindo, a morte com que Deus premia os bons. Quando os filhos abriram uma bolsa de palha que ele conservava pendurada no armador da rede e na qual ninguém podia mexer, encontraram uma boa quantia de dinheiro vivo, dinheiro que foi suficiente para custear as despesas do sepultamento. Ele juntava para aquela ocasião. Dizia, de vez em quando, que, quando morresse, não queria dar trabalho nem prejuízo a ninguém. Não queria ser um peso para os filhos na hora da morte.
           







Histórias do Leôncio – I


(Vicência Jaguaribe)


          Leôncio... Quem, em Jaguaruana, não conheceu o Leôncio, ou não ouviu falar dele? Sei que em toda cidade do interior há uma figura semelhante, mas este de quem falo tinha peculiaridades que estavam além da imaginação.
          Nas minhas lembranças mais remotas, lá está ele; achava até que o Leôncio não tivera começo e não teria fim. Sim, porque, ao me entender por gente, ele já marcava presença lá em casa. Nunca soube a sua idade. Só não digo que era eterno, porque conheço gente que acompanhou seu enterro.
          Mas o Leôncio era mesmo a figura singular de minha terra natal, onde cantavam pássaros outros. Filho de um dos ramos empobrecidos de uma das principais famílias da cidade, vivia como um mendigo, apupado pelas ruas e maltratado por aqueles que viam na loucura o estigma do diabo.
          Leôncio nascera do casamento consanguíneo (para não dizer incestuoso) de um tio com uma sobrinha, união que rendeu em torno de quinze filhos, dos quais somente dois escaparam dos xeques-mates da genética. Passava os dias na cidade, de casa em casa, e, no finalzinho da tarde, andava rumo ao Alto, uma espécie de bairro da periferia. Pela manhã, ainda madrugadinha, lá estava ele de volta.
          Não sei bem quando nem por que, só sei que meu pai passou a ser uma espécie de tutor do Leôncio: responsável por alimentá-lo, vesti-lo, comprar-lhe remédios. Ele gostava de meu pai (e meu pai, dele), de minha mãe, nem tanto; amava a Franci, o nome pelo qual chamava minha irmã, Francisca Marta. A mim, só se dirigia chamando-me Galça, corruptela de garça, por causa de meu magrém (palavra que preferíamos a magreza e que, aliás, é feminina – assim dizem os dicionários) e de minhas pernas finas – pernas de galça.
          Dava muito trabalho para tomar banho e trocar a roupa. Havia épocas em que só se banhava para mudar o fato, que, de tão sujo, já se rasgava. A única pessoa que conseguia fazê-lo entrar no banheiro sem muita confusão era a Franci. Nessas ocasiões, armava-se uma cena hilariante: minha irmã (que eu chamo de Neném) ficava na porta do banheiro orquestrando o banho: Leôncio, passa sabonete na cabeça. Leôncio, esfrega os braços. Leôncio, esfrega as pernas. Leôncio, passa a pedra nos pés. Leôncio, ....................... . Um dia, o marido de minha Tia Luzia, o Alberto Maia, passou pelo beco (nossa casa fica em uma esquina) e gritou: Eita, o banho do Leôncio tá sendo irradiado.
          A família dele morava perto de um rio, onde os irmãos costumavam banhar-se, quando crianças. Todos sabiam nadar, menos o Júlio, que atravessava o rio ajudado pelos outros. Um dia, resolveram amarrar o Júlio pela cintura com um cipó e puxá-lo pelas águas até a outra margem. Acontece, porém, que o cipó se partiu, e a correnteza levou o Júlio – não sei se o rio devolveu o corpo ou se lhe disponibilizou um recanto no fundo escuro das águas para a última morada.
          Em casa, a mãe sentiu falta do filho:
          - Lulu, cadê o Júlio?
          - Num sei não. Quem sabe é o Antônio.
          - Antônio, cadê o Júlio?
          - Num sei não. Quem sabe é o Leôncio.
          - Leôncio,.......?
          - ................... . ...................................... .
          E foi assim, de negação em negação, que a mãe ficou sabendo haver sido o filho engolido pelo rio.
          De vez em quando, pedíamos ao Leôncio para contar o episódio da morte do Júlio, e ele contava a história, rindo de vez em quando.
          É... o Leôncio era mesmo uma figura.




Histórias do Leôncio – II


(Vicência Jaguaribe)



          Leôncio... Quem, em Jaguaruana, não conheceu o Leôncio, ou não ouviu falar dele? Sei que em toda cidade do interior há uma figura semelhante, mas este de quem falo tinha peculiaridades que iam além da imaginação.
          Como todo mundo, ele dividia as pessoas em dois grupos: aquelas de quem gostava e aquelas que odiava ou simplesmente antipatizava. Minha irmã Francisca Marta, para ele a Franci; a Tia Maristela, irmã de minha mãe, e o papai pertenciam ao primeiro grupo. Com certeza eram pessoas que não só não o maltratavam, mas tinham paciência de conversar com ele e alimentavam suas fantasias, como fazia a minha tia. A mim e à minha mãe ele não odiava, pois nunca o maltratamos, mas também não nos incluía no primeiro grupo; acho que não simpatizava conosco. A mim, com certeza, achava-me antipática. Com relação à minha mãe, não sei bem, mas, se não me falha a memória, adorava implicar com ela. Lembro-me de que, sempre que brigava com ele, ela ouvia a seguinte informação:
          – Miram, Miram, o Chica num te quer mais. Ele tem uma mulher no Mossoró. Ele vai embora com ela.
          Nessas ocasiões minha mãe dizia: – O Leôncio não tem nada de doido. Ele é muito é atrevido.
          Quando meu irmão Raimundo Francisco terminou a antiga quarta série, mamãe mandou fazer um belo vestido azul, da cor de seus olhos, para ir à missa de colação de grau. Enquanto se penteava e se pintava, na sala de jantar, o Leôncio olhava-a, escorado na meia-parede que separava as salas e a cozinha de uma área comprida que acolhia algumas plantas. Quando ela terminou de se arrumar – muito bonita que estava (aliás, minha mãe não estava bonita, ela era muito bonita. Alva, loira, de olhos muito azuis e com um porte de rainha, chamava a atenção), perguntou:
          – E aí, Leôncio, estou bonita?
          – Tá. Tá todinha uma lata de doce. (Às vezes, a comparação variava: Tá. Tá todinha o cu de uma gata.)
          Era... O Leôncio tinha dessas coisas. Não sei se era o querer bem disfarçado ou o desamor declarado.
          No grupo dos que ele odiava estavam minhas duas avós – Pergentina e Otília (para ele, a Otila do João Luca – este era o meu avô materno, João Luís de Freitas) e a Dona Ester (a Ester do Zé Moreira), esposa de um primo dele, José Moreira Barreto. De quando em quando, dizia, a propósito, às vezes, de nada e sem que ninguém lhe perguntasse: Três pareia que eu não gosta: a Otila do João Luca, a Ester do Zé Moreira e a Pergentina.
          Também no segundo grupo estavam a Carmélia, cozinheira da minha mãe, a Nicácia – uma espécie de babá de toda a família – e todos que fossem do Giqui (distrito de Jaguaruana e terra da Nicácia) e andassem lá em casa.
          A Carmélia, esta sim, maltratava-o: jogava-lhe água fria ou qualquer objeto que estivesse à mão. Quando o papai a via fazendo isso, armava-se uma enorme confusão. Mas o Leôncio não guardava rancor: se logo depois da briga ela lhe pedisse para ir à casa da Carminha (mãe dela) deixar alguma coisa, ele, embora protestando, ia.
          Com a Nicácia, era outra a situação. Ela não o maltratava, mas também não o afagava. A Nicácia era uma senhora nascida no Giqui (distrito de Jaguaruana), cria de minha avó Otília, que, depois do casamento da mamãe, foi morar com ela. Ela ajudou a nos criar, e nós a amávamos e respeitávamos como se fosse uma segunda mãe. No que concerne ao Leôncio, acho que, apesar de não o maltratar, ela despertava nele um ciúme que se estendia a qualquer habitante do Giqui que aparecesse lá em casa. Quando ele via uma pessoa da família dela lá por casa, saía-se com algo assim: Oia, oia, Miram! Essa mundiça do Giqui vem só comer na casa do Chica.
          É... o Leôncio era mesmo uma figura.






A miragem do sol do meio dia


(Vicência Jaguaribe)




        O sino da Matriz avisava o meio-dia de um dia quente e empoeirado como só os dias do sertão conseguem ser. Aguardávamos que o papai chegasse da Prefeitura para o almoço.
        Enquanto esperava, eu me sentara na cadeira de balanço que minha mãe conservava no exíguo espaço que antecedia o corredor. A porta da rua, totalmente aberta, falava de um tempo em que não havia perigo de assalto. Em determinado momento, levantei a cabeça e achei que vira, em meio à reverberação, o inconcebível: meu pai e meu tio, Antônio da Rocha Freitas, apontavam no beco que confrontava com nossa casa, conversando como bons amigos. Levantei-me num salto e fui até a porta de entrada a fim de constatar que aquela imagem não era apenas uma miragem criada pelo sol e pelo calor do meio dia. Fiquei parada, em pé no batente da porta, até que eles se aproximaram da outra ponta do beco e pararam na calçada da bodega do Assis, que ficava em frente à nossa casa. Meu tio, então, pegou a direção da direita, enquanto meu pai desceu a calçada para atravessar a rua. Nesse momento, antes que ele completasse a travessia, deixei meu posto de observação e corri para dentro de casa. Não me lembro de haver dito nada à minha mãe, que com certeza sabia da novidade e devia sentir-se aliviada e feliz – seu marido e seu irmão, antes adversários ferrenhos, haviam feito as pazes.
        Minha cabeça estava a mil. Lembranças de brigas entre correligionários dos dois, de discussões, de tiros nos comícios, de comentários maldosos de ambos os lados misturavam-se com a imagem dos dois apontando no beco, conversando, e com o eco de uma palavra ouvida algumas vezes nos últimos meses: coligação. Eu era muito nova para compreender o significado de uma coligação política, mas já tinha idade suficiente para entender a diferença entre amigo e inimigo. Minha lógica de criança não aceitava que duas pessoas passassem, de repente, da condição de inimigos para a de amigos. Isso acontecia, eu sabia, entre crianças, que, quando brigavam, até uniam as pontas dos dedos indicadores para a outra partir, isto é, separá-los, em sinal de inimizade, mas que, dois dias depois, no máximo uma semana, faziam as pazes, voltando a ser amigas. Mas meu pai e meu tio eram adultos e, na minha cabeça de 10 anos, adultos não agiam daquele modo. Experimentei, então, um grande sentimento de vergonha pela atitude daqueles dois e, até me acostumar com a novidade, procurava fugir das ocasiões em que o assunto vinha à baila.

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        As imagens chegavam meio nebulosas. As conversas, as frases e as palavras soltas emergiam da memória de forma um tanto quanto confusa e às vezes não faziam sentido. O que eu entendia, no final das contas, é que ele era meio irmão de minha mãe e adversário político de meu pai.
        Morávamos a duas casas da casa dele e falávamos normalmente com três de seus filhos mais novos, que estudavam no mesmo grupo escolar em que minha irmã e eu estudávamos. Recordo-me de que, até o segundo ano primário, só assinávamos o sobrenome de nosso pai. O sobrenome de nossa mãe era para nós impronunciável, uma espécie de tabu, por ser o mesmo dele. No terceiro ano, porém, quando tivemos como professora a tia Neta, irmã do papai, acrescentamos, por ordem dela, o sobrenome Freitas. Lembro-me perfeitamente do que ela disse na ocasião: A partir de hoje vocês vão assinar Freitas Jaguaribe. É o sobrenome da mãe de vocês. E não me lembro de nenhuma reação contra.
        Depois de adulta, tomei conhecimento não só dos motivos da inimizade, mas também dos seus antecedentes. Minhas tias contaram que ele, nosso tio, Antônio da Rocha Freitas, fora amigo íntimo de nosso avô paterno, Raimundo Francisco. Era uma relação de amizade tão estreita que meu avô ia diariamente à casa de meu tio, cujos primeiros filhos, pequenos na época, eram tratados por minha avó e minhas tias como se fossem crianças da família. Depois da morte de meu avô, disseram, quando meu pai se apresentou como candidato a Prefeito, e meu tio negou-se a apoiá-lo, os dois romperam. Segundo elas, essa oposição deveu-se à intriga de um correligionário de meu tio, que o induziu a não confiar em meu pai, na época muito jovem.
        Um dia, uma amiga da família, brincando comigo, soltou a novidade: Sabia que seu pai e seu tio Antônio Freitas vão se casar? Mesmo sem entender direito o que significava aquele casamento, tive um choque acompanhado de vergonha; mas o sentir vergonha de tudo e de todos era quase um estado natural da menina tímida que eu era. De vez em quando, é verdade, eu ouvia falar nessa tal coligação, mas logo esquecia, até o dia em que a notícia se tornou realidade, e eu tive que conviver com ela.
        Mas a vergonha não durou muito tempo. Foi substituída pelo entusiasmo da campanha política que se avizinhava: saíra como candidato da Coligação, para prefeito de Jaguaruana, meu primo Adalberto, filho do tio Antônio. Era um rapaz alto e bonito, agrônomo recém-formado, que a família e os amigos chamavam Adal. Meus pais, inclusive, tomaram a ele e a uma de suas irmãs como padrinhos de meu irmão mais novo. Eleito, foi prefeito entre os anos de 1959 e 1963.

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        Hoje, eu entendo o motivo pelo qual meu pai e meu tio se uniram politicamente. Eles pretenderam enfraquecer ou neutralizar a força de uma nova liderança que ameaçava surgir – um paraibano que morava em Jaguaruana, conhecido como Dedé Marinheiro. Foi uma inteligente jogada política, que atingiu seu objetivo e durou de 1958 a 1967 - exatamente 10 anos. Em 1967 eles estavam novamente em lados opostos.




Sobre o Amor e para o Amor, com amor

(Vicência Jaguaribe)


Deixai vir a mim estas
criancinhas e não as impeçais,
porque o Reino dos Céus é para
aqueles que se lhes assemelham.
(Mateus)



        - Amor, que janela é aquela?
        - É a janela de Dom Mário.
        Era eu, na hora em que já devia estar no quinto sono, conversando com o Amor, que, a meu pedido, armara minha rede pertinho da dela.
        - E pra que serve uma janela tão alta assim?
        A janela a que me referia não era nem sequer uma janela, na realidade, mas uma abertura em forma de retângulo disposto na vertical, no alto da parede que separava do corredor o quarto grande onde dormíamos. Devia ser uma abertura para facilitar a entrada e a circulação de ar, um arranjo necessário em uma terra de muito calor.
        - E pra que serve essa janela, hein, Amor? Responde!
        - Vai dormir, Vicência Maria, o Amor já adormeceu.
        Era a tia Neta, que se levantava cedo para dar aula. Adormeci e sonhei. Sonhei com o tio Mário, irmão de meu pai, em pé na borda da “janela”, ameaçando saltar. Acordei suada, com o Amor sacudindo a rede e dizendo que eu tivera um pesadelo.
       
        Amor... Começo esta imitando Guimarães Rosa (com sua devida licença) em “A hora e vez de Augusto Matraga” – Amor não é Amor, não é nada. Amor é Ieuclice. Ieuclice Gomes da Silva.
        Mas a cidade inteira tratava-a por Amor.
        Chegou na casa de minha avó aos dez anos – uma menina-mulata gorda, de feições grossas, olhos vivazes e gênio meio esquentado – para ajudar no trabalho da casa. Lembro-me dela já moça feita e já havendo ascendido da posição de simples ajudante para a de serviçal mor. Era ela que cozinhava, lavava e engomava para toda a família, excetuando-se as redes, os lençóis e as toalhas.
        De vez em quando, aborrecia-se com alguém ou alguma coisa e ia para a casa do pai viúvo. Quando me inteirava da novidade, me punha a chorar, contava à minha irmã e, juntas, íamos à casa do pai dela, seu Manuel Inácio, resgatá-la. Com o tempo e com a maturidade, ela abandonou esse hábito, de modo que as crianças mais novas da família nunca correram o risco de ficar sem ela.
        O Amor era a melhor amiga adulta que uma criança poderia ter. Amava incondicionalmente crianças e jamais as desgostava, por isso mesmo era uma espécie de chamariz para meninos e meninas. Quando saía de casa, tinha sempre uma fileira de crianças – as da nossa família e outras mais, amigos, parentes e aderentes – acompanhando-a.
        Adorava circo e, quando sabia que uma daquelas pequenas e pobres companhias mambembes, que costumam perambular pelo interior, ia fazer uma temporada em Jaguaruana, ficava em festa. Se o papai fosse o Prefeito – pois prefeito ganhava entradas para todas as funções – ela, com suas crianças, não perdiam uma noite de espetáculo. Gostava também de, em datas como Natal, Ano Novo, Festa da Padroeira, por exemplo, passear na pracinha da cidade, olhar as loterias e os pequenos stands de jogos e, de vez em quando, comprar uma besteirinha ou arriscar alguns trocados.
        Gostava muito de boneca e, mais ainda, de costurar-lhes roupinhas, e sempre a mão. Como insistíamos para que ela fizesse esses pequenos mimos à noite, quando a pobre coitada terminava o serviço da casa e queria descansar! Para satisfazer-nos, ela fazia esse trabalho de artesã até à luz da lamparina e do farol, quando o precário gerador de energia elétrica da cidade entrava em pane, que, no meu tempo de menina em Jaguaruana, vivíamos como no Rio de Janeiro dos anos 50 – de dia, falta água / de noite, falta luz –, nos versos da marchinha “Vagalume”.
        O Amor desenvolveu uma afeição incondicional pela família Jaguaribe – a nossa família. E, na verdade, ela já era, nos meus tempos de criança, um membro da família – inimigo dos Jaguaribes era seu inimigo também. Em tempos de eleição, principalmente, essa afeição tornava-se mais intensa, e ela radicalizava. Com o passar dos anos, com a morte de minha avó e o envelhecimento de minhas tias, ela passou a ser a própria dona da casa.
        À proporção que eu, minha irmã e meu irmão mais velho – filhos da primeira fornada – crescíamos, foram nascendo outras crianças na família: meus três irmãos mais novos, os dois filhos da minha tia Luzia e, um pouco mais tarde, as quatro filhas do tio Mário, que o Amor ajudou a criar quando elas foram morar com a vovó. Tinha por essa nova geração o mesmo amor e o mesmo desvelo. Reservava para a segunda das quatro meninas do tio Mário, a Caroline, um amor exponencial. Quando recebia o salário do Estado, gastava uma boa parte dele com a menina. Uma vez, eu lhe disse que não gastasse seu dinheiro, com minha prima; ou gastasse com ela própria ou guardasse para uma necessidade. Ela, então, me deu a seguinte resposta: Eu gasto é com ela. Se eu fosse rica, eu cobria ela de ouro. Foi praticamente a mãe das quatro, com licença para autorizar, desautorizar, castigar, liberar de castigo – só não para matar, que não era 007.
        Ainda cuidou de alguns sobrinhos-netos de minhas tias – as três filhas de minha irmã Francisca Marta, os três filhos do Raimundo Francisco, o da Beta, a mais velha da Eleonora e o mais velho da Caroline. Quando ela morreu, a Caroline estava grávida da Gabriela. E o Amor ainda lhe disse: Eu vou viver para cuidar dessa tua menina! Mas isso não aconteceu: ela se foi em agosto de 1991, e a Gabriela nasceu em janeiro de 1992.
        Deixava escapar umas tiradas, às vezes, engraçadas, às vezes, curiosas, e não tinha papa na língua. Se alguém quisesse tê-la como inimiga, era só magoar uma criança. Não gostava da segunda mulher do meu irmão porque fizera os bichinhos sofrer – referia-se à separação; os bichinhos eram os filhos dele. Quando tinha raiva de alguém dizia: Vamos botar veneno na comida dele, vamos!
        Nós, as crianças da família Jaguaribe – que todos fomos crianças um dia –, tivemos o privilégio de ter uma amiga como o Amor. Sim, porque muito mais do que uma babá, uma pessoa da família, foi a amiga que nos sabia consolar, que nos fazia rir, que arranjava desculpas para as nossas reinações infantis, mas que, acima de tudo, nos dava amor, muito amor. E como amor com amor se paga, ela recebeu de todos nós, até o fim, uma grande parcela do amor que nos dedicou.
        Por tudo que o Amor fez por nós, mas principalmente porque preencheu nossas vidas de amor, recordamo-la com amor e esperamos que possa receber com amor esta nossa homenagem de amor. Que o seu amor acompanhe, pelo tempo afora, Amor, as crianças cujas vidas tornou plenas de amor.



Altina, nas alturas


(Vicência Jaguaribe)



        - Altina, conta a história do dilúvio.
        Era a voz da menina que amava ouvir histórias mais do que qualquer outra coisa na vida.
        E a Altina, sem se fazer de rogada, começava:
        - Deus desgostou-se da maldade dos homens e falou a Noé, o único...

        A Altina era uma afilhada de minha avó paterna, a Pergentina, a quem os netos chamavam de vovó Perginta. Vivia praticamente na casa de minha avó, e era uma pessoa boníssima, incapaz de uma grosseria com quem quer que fosse, especialmente com crianças. Às vezes a vovó se irritava, mas ela não perdia a fleuma:
        - Minha Madrinha, tenha calma, essa agitação lhe faz mal.
        A Altina nasceu no Giqui, distrito de Jaguaruana. Pobre, filha de mãe solteira, sem pai que a protegesse e a sustentasse, precisava encontrar um serviço que lhe rendesse algum dinheiro. Por isso, novinha ainda, foi trabalhar na casa do Chico Pereira, viúvo recente, que gostou daquela jovenzinha graciosa e discreta, a quem passou a chamar Cabocla. E o que sempre acontece nessas ocasiões deu-se mais uma vez. Da relação que durou uns dez anos nasceram dois filhos.
        Há algum tempo, a Altina sentia-se contrariada e ao mesmo tempo sensibilizada com o cumprimento que o Padre Marcondes, vigário de Jaguaruana, lhe fazia todas as vezes em que ia ao Giqui e a encontrava. Olhava-a entre sério e brincalhão e dizia em um tom de reprimenda de confessionário: Altiiina! Altiiina!
        - Um dia, gostava de contar ela, teve as Santas Missões aqui em Jaguaruana, e eu vinha todo dia do Giqui ouvir a pregação dos frades. No último dia de pregação, um dos frades falou da pureza e da castidade como virtudes importantes para a santificação. Falou ainda da tristeza que Deus sentia a cada pecado dos homens, principalmente os pecados da carne. Nesse momento, senti um grande aperto no coração, comecei a chorar e resolvi deixar o Chico Pereira. No dia seguinte, cedinho, lhe disse o que tinha resolvido, e ele com firmeza me prometeu: Está bem, cabocla, de hoje em diante não mais vou tocar em você. E nunca ameaçou descumprir sua palavra.
        Os filhos já adultos, a Altina teve condições de sair do Giqui. Passava longas temporadas na casa da minha avó e, sempre que minha mãe tinha filho, ficava lá em casa ajudando no que fosse preciso.
Passou um tempo na cidade de Alto Santo como cozinheira do Padre Joãozito, até que esse apóstolo do Senhor andou brincando com uma jovenzinha de uma família influente do lugar e teve de fugir na calada da noite, levando naturalmente a tiracolo a nossa Altina.
        Na cozinha a Altina se virava: famoso era o seu pastelão, uma espécie de omelete grande, que ela fazia em ocasiões especiais. Se alguém dizia não haver gostado, ela muxoxava com desdém: Ora, até o Padre Joãozito comia e elogiava!
        A Altina era muito fervorosa e a bondade em pessoa. Mas era, em especial, sensível e ingênua. Chorava por qualquer bobagem e penalizava-se de tudo e de todos. Tinha, no entanto, algumas tiradas que nos faziam rir. Lembro-me do modo como tratava a Tânia, uma garota nossa prima, que passava temporadas na casa da vovó. Como a Tânia chorava muito, ela apelidou-a mulher de novela.
        A ingenuidade da Altina era proverbial, daí que o tio Mário e o Alberto Maia, marido de minha tia Luzia, se aproveitavam e armavam situações que hoje, vistas a distância, me parecem sádicas. Ela costumava ir à missa diariamente e saía de casa muito cedo, por isso, toda noite, quando ia deitar-se, pendurava em um armador ou prego uma cruzeta com o vestido que usaria para ir à igreja. O Alberto, sabendo que ela não enxergava bem, preparava à noite a tragicomédia para a manhã seguinte: pregava nas costas do vestido uma grande cruz de fazenda; costurava os punhos das mangas compridas ou a barra do vestido; escondia os sapatos, ou fazia outra arte qualquer. Quando ia se arrumar, ela se afobava, chorava e às vezes até perdia o começo da missa.
        Um dia o tio Mário, sabendo da amizade dela com as minhas tias-avós Florinda e Maria Augusta, e conhecendo a irritabilidade das duas velhas, resolveu pregar-lhes uma peça. Passou pela casa delas, parou na janela alta e pôs-se a conversar. Quando já ia se retirando, fez o ar de quem de repente se lembra de algo e despejou como se achasse aquilo a coisa mais inocente do mundo: Vocês sabem que a Altina imita a senhora, dona Maria Augusta, com perfeição? Um dia desses, até ganhou dinheiro do Zé Cláudio, o Zé da dona Rosa, sabem, para imitá-la.
        Bem, no outro dia, pela manhã, como sempre fazia, a Altina foi visitar as duas amigas e achou-as estranhas, como se não estivessem satisfeitas com sua presença.
        - Minha gente, o que é que vocês têm que estão tão bicudas?!
        - Bicudas, é?! – vomitou a Florinda, com as mãos nas cadeiras e balançando o corpo, como era seu costume. – Ouvimos dizer que você recebeu dinheiro de Zé de Rosa para arremedar Magusta! Cuidado, Altina! Zé de Rosa não bota água a pinto.

        - Deus desgostou-se da maldade dos homens e falou a Noé, o único homem justo que restava. Disse-lhe que ia fazer chover fortemente durante quarenta dias e quarenta noites e, dando-lhe as medidas, mandou-o construir um grande barco, onde devia ele reunir, de todos os animais existentes na terra, um macho e uma fêmea. Também acolheria sua esposa, seus filhos e suas noras. E mais ninguém. Se ele acolhesse alguém que não pertencesse à sua família, o barco afundaria. Noé obedeceu às ordens de seu Deus e esperou que as chuvas chegassem. Quando as águas começavam a cobrir os locais mais altos e a arca moveu-se, aproximou-se, nadando, uma afilhada sua, que lhe pediu para salvá-la. Com pena, o velho a recolheu à barca, que ameaçou soçobrar. Ele, então, foi obrigado a devolvê-la às águas, que a tragaram.

        O que mais me impressionava nessa narrativa era o detalhe do acolhimento e do abandono da menina pelo padrinho Noé. No íntimo, eu questionava não só a atitude de Noé, mas também a coerência de seu Deus. Alguns anos depois, quando tive a oportunidade de pegar em uma Bíblia (no meu tempo de criança, a leitura do Livro Sagrado ainda era tabu), procurei logo o livro do Gênesis, para finalmente ler a história do dilúvio. Tive uma grande decepção: na narrativa de Noé faltava o episódio da menina. Adotando, sem perceber, a perspectiva da criança que muitas vezes ouvira aquela história pela boca da Altina, fiz mentalmente a pergunta: Finalmente, qual é a versão verdadeira?
        Hoje eu penso: de onde a Altina tirou aquele detalhe? Terá ouvido de alguém? Da mãe? Da avó? De alguma tia? Ou foi ela mesma que arrancou da imaginação aquele pormenor, que deu à História do Dilúvio e à figura de Noé um toque de humanidade?! Se assim foi, a adulta que hoje sou acredita que o velho patriarca deve ser-lhe eternamente agradecido pelo acréscimo que fez à sua história. Mas especialmente, se assim foi, a criança que eu fui agradece-lhe pela emoção que a envolvia naquelas suas sessões de história.



A Casa da Rua Padre Rocha, ou
a casa da minha infância



(Vicência Jaguaribe)



Entrem, por favor

        Até 1961, moramos de aluguel na Rua Padre Rocha, em uma casinha pequena e graciosa, cuja proprietária, conforme ouvira dos adultos, era a Senhora Donana Moreira, mãe da Dona Hilda Moreira.
        Tinha uma única porta de entrada, pequena e estreita, a qual se acessava diretamente da calçada. Um batente, onde costumávamos sentar para jogar pedra, levava a uma espécie de hall de entrada, pequeno espaço onde minha mãe conservava uma cadeira de balanço, e ao qual, não sei por que, todos nós nos referíamos como gabinete. Ele emendava com o estreito e curto corredor, que corria pela parede dos dois quartos e desembocava na sala de jantar.
        À esquerda de quem entrava, ficava a sala de visitas, que ostentava duas varandas, o diferencial arquitetônico da casa. Eram pequenas e graciosas e distinguiam a nossa casa das outras casas da mesma rua, desprovidas de personalidade. Todas elas (a exceção era a casa de minha avó paterna e a do Seu Joaquim Barbosa) tinham uma janela e uma porta, que se dividia horizontalmente em duas partes. Nossas varandas só eram abertas totalmente em ocasiões especiais. Nos dias comuns, mesmo quando estava quente, minha mãe costumava abrir somente as venezianas.
        Essa sala constituía uma espécie de refúgio para os meus muitos momentos de leitura. Era a casinha dos 7 anões, a carruagem da Cinderela, a casa da vovozinha, a torre da Rapunzel, o castelo da Bela Adormecida. Mas era principalmente a caverna de Ali-Babá, de onde eu decolava em meu tapete voador para as paragens da fantasia. Ali eu me sentia protegida, uma vez que, sendo para minha mãe o recanto nobre da casa, aquela sala não podia ser invadida por qualquer intruso. Aliás, a porta que a ligava ao gabinete de entrada estava constantemente fechada.
       A decoração da sala era muito simples, como tudo o que cercava minha mãe. Lembro-me de um conjunto de palhinha – um sofá, duas cadeiras de braços e mais seis cadeiras menores. Nas paredes, que me recorde, uma grande fotografia de meu avô paterno, Raimundo Francisco, dois porta-bibelôs com uma prateleira de vidro e, mais tarde, nossas fotografias da Primeira Comunhão. Também um quadro em alto-relevo pintado pela Sylvia, filha da Tia Maristela, que representava uma paisagem campestre – uma casa entre árvores e um estreito riacho, que serpenteava pela vegetação exuberante. Esse quadro foi, durante a minha infância, o desencadeador por excelência da minha fantasia. Não conto as vezes em que penetrei naquela tela, em cujo interior vivi minhas aventuras preferidas. Às vezes, eu era a Maria, de “João e Maria”, entrando na casa da bruxa; outras vezes, era Chapeuzinho Vermelho, escondendo-se do lobo na casa da vovozinha. Mas, na maioria das ocasiões, eu inventava a minha própria fantasia, e aí me dessem tempo para concluí-la, o que nem sempre era possível, por causa da voz da mamãe ou da Nicácia, que me trazia de volta à realidade do mundo adulto.


Façam-se de casa

        Dessa sala tinha-se acesso ao primeiro quarto – o quarto de casal –, que só comportava a cama e o guarda-roupa, em cima do qual a mamãe guardava, isto é, punha fora do alcance de suas crianças, as belas e provavelmente saborosas barras de chocolate Nestlé, que o papai trazia de Fortaleza. Os altos daquele guarda-roupa eram, para minha irmã Neném, o baú do pirata. Como minha mãe controlava as doses, ela procurava alcançar os doces subindo na cama. Às vezes conseguia. Eu não a acompanhava naquela aventura porque não gostava de chocolate.
       Quase me esqueci de que naquele minúsculo quarto minha mãe reservara um cantinho, junto da porta que dava ao corredor, para a rede onde meu pai descansava depois do almoço. E vejo a minha irmã, Francisca Marta ou Neném, debruçando-se sobre uma das beiradas da rede, para beijar-lhe os pés. Minha irmã tinha realmente com nosso pai uma grande relação afetiva, a que ele correspondia. Eu, não, era mais contida, mais arredia, por isso nunca fizemos públicas demonstrações de afeto. Isso, no entanto, não me causou problema, pois jamais questionei seu amor por mim.
        Foi nesse quarto que minha mãe deu à luz (como esse dar à luz é pomposo e pretensioso – eu havia digitado pariu) seus quatro primeiros filhos. Nele ela cumpriu os quatro resguardos de quarenta dias, alimentada com galinhas há meses presas em seu quintal para limparem, dizia ela.
Havia uma porta de correspondência entre esse e o quarto das crianças, tão minúsculo quanto o outro, ou até mais do que ele.
       Nesse segundo quarto, dormiam meus dois irmãos, a Neném e o Raimundo Francisco. Eu, não... eu dormia na casa de minha avó paterna, que ficava na mesma rua. Somente quando adoecia – de doença mais grave, como sarampo – é que ia em busca dos cuidados de minha mãe e dormia com os irmãos. O quarto das crianças não tinha cama, pois todo mundo dormia de rede. Embaixo de cada rede, era posta uma bacia, para que o xixi não escorresse pelo quarto. Em um dos recantos, mamãe instalara seu santuário: um gracioso móvel composto de uma pequena mesa, com uma gavetinha estreita, onde eram guardados os seus livros de reza e as suas orações avulsas. Sobre essa mesinha, fixava-se a peça mais importante do móvel: o oratório propriamente dito, o lugar onde ficam os santos, com as portinhas e as laterais de vidro decorado e um estilo que lembrava uma igreja gótica – uma cruz centralizada e várias pequenas torres projetando-se para cima. Certo dia, um de nós, não sei mais quem foi, acendeu uma vela, e o fogo, atingindo a varanda de uma das redes, quase provocou uma tragédia. Mas, para conforto de minha mãe, seu precioso santuário foi muito pouco atingido: saiu quase incólume da tentativa de santicídio.
        Uma segunda porta fazia a comunicação do quarto das crianças com a sala de jantar, um aposento mais comprido do que largo, ocupado por um bufê, uma cristaleira e uma mesa elástica, com oito cadeiras. Não comíamos nessa mesa, somente usada nos aniversários, nos dias em que recebíamos visitas importantes e nos eventos políticos. Era uma sala meio escura, que à noite me metia medo. Aliás, aquela casa toda me assustava. Conta-se que, em um dos resguardos de minha mãe, meu pai cedera, para minha avó Otília, seu lugar no quarto. (Sempre que minha mãe tinha filho, nossa avó vinha de Fortaleza para cuidar dela e do bebê por uns trinta ou quarenta dias.) Pois nesse dia papai armou sua rede na sala de jantar. Depois de algum tempo, minha mãe o sentiu, meio nervoso, deitar-se a seu lado na cama. Perguntou o que acontecera e ele inventou uma história que não a assustasse àquela hora. Pela manhã contou a verdade: vira uma mulher perto da sua rede, olhando-o fixamente.


Fiquem para almoçar

        A sala que a essa se seguia, a sala de copa, formava o espaço mais agradável da casa: amplo e claro, era nele que fazíamos as refeições. Foi nela que a mamãe instalou seu primeiro fogão a gás e sua primeira geladeira, como também o guarda-louça.
        Era nessa sala que, toda noite, sentando-me em cima da mesa, minha mãe obrigava-me não a beber, mas a ingerir um copo de leite, ameaçando-me com uma chinela, sem nenhum constrangimento.
        Foi dessa sala que eu, aos dois anos, vi um vulto de mulher na porta da despensa, o que me levou a dormir na casa de minha avó Pergentina. Foi nessa sala também que meu irmão, Raimundo Francisco, quando pequeno, desesperado com os cuidados exagerados da Nicácia, postou-se diante da geladeira e ordenou:
       - Explode, geladeira, explode, pra eu ver o que é que a Cáci vai fazer!
       Num nível um pouco mais alto, que se atingia subindo um batente, ficava o restante da casa: a despensa, a cozinha, o banheiro e a casinha do aparelho sanitário (nessa época, o local do banho ficava separado do sanitário). Acompanhando esses aposentos, separada deles por uma meia-parede com telas, e protegida lateralmente pela parede alta da casa vizinha, corria uma estreita área aberta, com acesso para a sala de copa, e que só terminava no quintal. Nesse espaço aberto, costumávamos (os três irmãos) brincar e brigar.
        Minha mãe podia perdoar qualquer mau comportamento dos filhos, menos brigas. Sua reação aos nossos embates infantis terminava sempre com umas boas palmadas, e iniciava-se com uma reminiscência de seus tempos de criança: Não havia briga de irmãos lá em casa – sempre se referia à casa de minha avó como lá em casa. A essa afirmação eu sempre reagia, no espaço mais recôndito de meu pensamento, sem nunca ter coragem de declarar-me – achava que minha mãe não estava dizendo a verdade, mas louvando, como meu avô e seu pai dizia, pois todos os irmãos que eu conhecia brigavam.
        Um dia, eu e a Neném enfrentávamos a segunda etapa de suas intervenções nas nossas constantes encrencas. O Raimundo Francisco aparecera no ponto em que a área emendava com o quintal e começara a rir. A mamãe, então, virou-se para ele: Tá rindo, é? Pois venha cá, você vai entrar na peia também. E, sem remorso e sem medo de ser feliz, encheu-o de chineladas.
        O que chamei de despensa era mais um quarto multifuncional: funcionava como quarto de engomar; como espaço para guardar roupa suja (devidamente acondicionada em cestos de palha) e também roupa lavada (devidamente guardada em baús); como um WC (servido com urinóis ou penicos) especial para as crianças, que não deveriam usar o aparelho sanitário dos adultos; e até mesmo como chocadeira para galinhas. Servia também de aposento de dormir para os que às vezes não conseguiam mensurar a área daquela casinha. Tudo muito limpo e arrumado, porquanto D. Miriam Freitas Jaguaribe, minha mãe, não fazia vista grossa para os cuidados com a higiene.
        A cozinha, pequena, era quase toda tomada pelo fogão – um grande fogão a lenha, mais usado do que o fogão a gás, que, aliás, só foi comprado bem mais tarde. Nesse fogão era feita não só a comida de todo dia, ou a comida ordinária, mas a extraordinária – o saborosíssimo doce de leite de minha mãe (e aqui eu digo bem alto, para todos ouvirem, como fizeram, certa vez, os profissionais da propaganda da Columbia Pictures Corporation: Nunca existiu um doce de leite como o de minha mãe); suas canjicas e suas pamonhas de tirar o fôlego; seu delicioso doce de mamão verde com coco; suas gostosas feijoadas com pirão; suas inesquecíveis buchadas de carneiro. Na cozinha preparava-se e cozinhava-se a comida, mas os pratos, panelas e demais apetrechos eram lavados lá fora, no quintal, à sombra de uma latada.
        Uma lembrança muito viva da cozinha é toda a família (exceto o papai, claro) comendo no chão, com os pratos e as panelas em cima de uma esteira, comprada especialmente para esse mister. Seria um remanescente de alguma taba ou de alguma senzala em nosso sangue?! Eu gostava, e as outras crianças da casa também deviam gostar desse hábito meio agreste, que a mamãe só punha em prática quando o papai viajava, o que era muito frequente.
        Quando vejo, hoje, uma casa ou apartamento de classe média com dois ou três banheiros, às vezes, até quatro, lembro o banheiro que tínhamos na casa da minha infância, em Jaguaruana. Como não havia água encanada, a água para os serviços domésticos e a higiene pessoal era guardada em potes, bacias, baldes e pequenos tanques, muitas vezes construídos dentro dos banheiros. O lá de casa era totalmente nu, sem tanque, sem pia, sem adornos, com um único pote de barro onde era armazenada a água do banho.


Esperem por mais agrado

        Entre o banheiro e o quintal, havia uma pequena área atijolada, com uma cacimba protegida por uma tampa de cimento, ou melhor, a metade de uma cacimba – o muro que separava a nossa casa da casa vizinha (as duas pertenciam à mesma família) passava exatamente no meio da cacimba, de forma que cada casa tinha acesso a uma cacimba mais ou menos particular. Como o fornecimento de energia elétrica em Jaguaruana era muito precário (passávamos mais noites à luz das lamparinas, dos faróis e dos lampiões do que à luz da lâmpada elétrica), minha mãe costumava servir o jantar das crianças mais cedo e, para aproveitar a última luminosidade do dia, servia-nos na cacimba. Ainda hoje, quando um de nós se lembra desses jantares na cacimba, diz alguma coisa como Não existe nada melhor do que comer arroz mole – era assim que chamávamos o prato “Maria Isabel” – (ou qualquer outra comida) na beirada da cacimba.
         Seguia-se a essa área a primeira parte do quintal, imenso pela perspectiva infantil – ia até a rua de trás, para onde se saía por um pequeno portão. Nessa primeira parte, o papai mandara fazer uma grande coberta de palha – a latada –, que protegia do sol e da chuva a bomba d’água, o forno a lenha e o local onde os pratos eram lavados. O espaço era tão grande que se podia armar mais de uma rede.
        Na segunda parte do quintal, a mamãe mandara construir um galinheiro, onde sempre se podia pegar uma galinha gorda e limpa – palavra que nesse contexto significava saudável, sem perigo de estar contaminada pelo gogo (doença que ataca a língua das aves, especialmente as galináceas).
        Logo depois do galinheiro, podiam-se divisar os galhos de uma cajazeira, os quais pendiam do quintal da vizinha sobre o nosso muro. Minha irmã Neném, sempre mais afoita do que eu, conseguia trepar-se no muro para surrupiar os cajás da Maria Oliveira, a nossa vizinha, que merece uma crônica à parte.


Era uma vez uma pequena e graciosa casa

        Quando nos mudamos para uma casa grande, quero dizer, enorme, localizada na avenida principal da cidade, minha mãe sentiu saudade da casinha graciosa que a acolhera desde o casamento. Volta e meia, ela dizia que ainda a compraria, mas morreu sem satisfazer esse desejo. Não sei quem a comprou da proprietária original – a Donana. Só sei que a casa, hoje totalmente deteriorada, perdeu aquele detalhe que fazia a diferença de sua arquitetura simples e sem estilo – tiraram-lhe as varandas. Hoje, ela é mais uma construção descaracterizada pela sanha, pela ignorância e pela insensibilidade dos novos donos do dinheiro.




A terapia do palco


(Vicência Jaguaribe)



        Quem me conheceu em criança há de confirmar o que já disse em crônica mais de uma vez: eu era o exemplo mais acabado da timidez. Duas fotografias – uma com a Neném – minha irmã Francisca Marta –, sentada em um banco de praça, e outra com a tia Neta e a Madalena Barbosa retratam o protótipo da criança tímida.
       Na primeira, eu devia ter uns três anos e apareço com os cabelos presos em duas tranças, que me caem para a frente, por sobre os ombros, enquanto a Neném, talvez com dois anos, traz o cabelo penteado em cachos e o dedo na boca. Mas o que acho de especial nessa fotografia é a minha pose, que revela como eu estava pouco à vontade naquele estúdio ao ar livre: as mãos unidas, os braços estirados para a frente, descansando entre os joelhos cobertos pelo vestido enfeitado com delicadas aplicações de frutas; o corpo pendendo ligeiramente para a direita e a cabeça caindo sobre o ombro desse mesmo lado, deixando sobre ele uma pequena sombra. Quando vi pela primeira vez essa fotografia, imaginei que minha pose se devesse ao sol, que estaria incomodando-me os olhos. Depois, porém, vendo que a Neném se conservara ereta, concluí que o que me incomodava não era o sol, a nossa estrela de quinta grandeza, mas um outro sol, muito mais forte – o da timidez. (Acho que a metáfora não é muito sugestiva, mas deixo-a assim mesmo.)
        Na segunda, e esta é bem mais característica, apareço de vestido branco, ao lado da Madalena, com os dois braços para cima, e as mãos empurrando a cabeça para baixo, de maneira que o rosto fica totalmente na sombra, e os traços fisionômicos, indistinguíveis.
        A característica de personalidade sugerida pelas duas fotografias incomodou-me durante muito tempo, e foi relativamente vencida à custa de muita força de vontade. Até por volta de doze anos eu me envergonhava de quase tudo: de cumprir o ritual diário de pedir a bênção, principalmente de meu pai; de cumprimentar as pessoas; de entrar em contato com gente desconhecida; de pedir alguma coisa a alguém; de agradecer; de vestir uma roupa nova, e de muitos outros rituais que era obrigada a cumprir.
       Existia, no entanto, uma prática que paradoxalmente me deixava relativamente à vontade: a exposição no palco, quer fosse um palco de verdade, quer fosse um simulacro dele, como a sala de aula, no momento em que a professora nos mandava ler em voz alta.
        Durante minha permanência no Grupo Escolar Manuel Sátiro, em Jaguaruana, onde cursei o Primário até a quarta série, participamos eu e minha irmã, como atrizes, de todas as festas promovidas pela Diretora, Dona Edith Moreira Barreto, também pianista. E essas festas eram muitas: todos os feriados nacionais, estaduais e municipais; dia das mães; Páscoa; Natal; aniversários; e tudo o que a imaginação da dona Edith achasse ser digno de festa.
       Muito exigente, mesmo perfeccionista, a Diretora nos submetia a um regime de ensaio estafante, em horários às vezes inconvenientes, o que levava minha mãe a jurar que não participaríamos mais dos dramas da Edith, como ela dizia. Mas eu amava aquela prática. Ela ensaiava o que na época chamávamos de bailado e também pequenas representações dramáticas, canto coral, declamação e outras manifestações artísticas que agora já me fogem à memória.
        A declamação, aliás, foi uma constante em minha vida no Grupo Escolar, e acho que responsável direta por ter-me libertado da timidez. Apesar de a dona Edith ensaiar bastante, até perceber que estávamos prontas, na postura, na entonação, nos gestos, nas expressões faciais; apesar de sabermos que ela estaria ao lado na função de ponto (uma pessoa que, às escondidas do público, auxilia os atores, recordando-lhes, em voz baixa, suas falas), enfrentávamos sempre o desconhecido, porque durante a apresentação tudo poderia acontecer. E um dia aconteceu. Festejávamos o aniversário do vigário da cidade – Monsenhor Aluísio de Castro Filgueiras. Era o meu último ano no Grupo Escolar, e a Diretora me mandou decorar um poema. Não sei por que motivo ela não pôde ensaiar como das outras vezes, e eu, preocupada com o famigerado Exame de Admissão, a que me submeteria alguns dias depois, em Fortaleza, não devo ter-me empenhado em decorar o texto. O fato é que, no meio da declamação, deu-se um branco e não houve ponto que me salvasse.
        Fora do Grupo Escolar, nossa vida de artista prosseguia com o que no interior se chamava de dramas, pequenas peças de temáticas variadas, direcionadas a crianças ou a adultos indistintamente. Quem nos preparava para essas representações eram a nossa tia Marinete Jaguaribe, a tia Neta; a dona Olenka, professora do Grupo, e sua mãe, Hilda Moreira, nossa madrinha de São João – minha e de minha irmã. A renda dessas representações revertia em benefício da Igreja ou de alguma campanha humanitária.
        Dessas peças, a que me ficou nitidamente na lembrança foi a da Branca de Neve, eu no papel da Princesa que intitula o conto, e o Aluísio Costa no papel do Príncipe. O cenário principal, o da casa dos anões, foi feito com esmero, usando-se lençóis brancos, com os quais se montou uma estrutura em formato de casa. Recordo perfeitamente o vestido que usei para representar a princesa branca como a neve, de lábios vermelhos como o sangue e de cabelos negros como a noite. Era um vestido fino, cor de rosa, enfeitado com renda e bico, que me caía até os pés, feito pela tia Maristela.
        Para dar mais vida e graça à peça, as diretoras enxertaram um momento de dança – a dança das borboletas, que apareciam em um sonho da Branca de Neve, quando a Princesa dormia na floresta. Eram os pequenos insetos alados representados por meninas usando vestidos finos, de cores variadas, e ostentando bonitas asas. Minha irmã era uma das borboletas. As meninas dançavam ao som de uma valsa, depois de entoarem a seguinte canção, que resume o conhecido conto de fadas:


Recordo-me agora
De uma linda história
Que ouvi contar,
De Branca de Neve,
Que a madrasta infame
Mandara matar.
A pobre menina
Saiu arrastada
E pela mata seguiu,
Mas o espelho cristalino
Marcara-lhe o destino
E ela sorriu.
Recordo-me agora
De Branca de Neve
E o que aconteceu,
Soltaram na mata
E disseram em casa
Que ela morreu.
A pobre menina
Saiu pela mata
E se pôs a chorar,
Mas encontrou
Uma casinha
Bem pequenininha
E se pôs a cantar.
Bateu na portinha,
Chamou muito tempo
E ninguém atendeu.
Entrou na casinha,
Viu sete caminhas
E numa adormeceu.
Quando os donos
Da casa chegaram,
Fizeram um grande
Escarcéu, pois todos
Pensavam que
Branca de Neve
Tinha vindo do céu.
Depois veio o Príncipe
E com Branca de Neve
Ele se casou.
Eu era bem pequenina
Quando essa linda
História mamãe
Me contou.


        Sei que o espetáculo foi um tremendo sucesso, mas a Branca de Neve morria de vergonha quando encontrava o Príncipe fora do palco, ainda mais porque os adultos ficavam brincando e perguntando sobre o beijo com o qual o Príncipe a arrancara do sono eterno.
        É, foi essa exposição no palco – a qual deve ter desencadeado em mim um processo de catarse – que me fez, aos poucos, perder o medo de enfrentar o público, o novo e o desconhecido. Curar-me, enfim, dessa doença dolorosa e destruidora de vidas, que é a timidez. É claro que não me curei totalmente, mas eduquei-me e aprendi a enfrentá-la. Ela, hoje, não me deixou de todo, mas está sob controle.



 O gigante de dois metros de altura



(Vicência Jaguaribe)



        O cartório ficava em um prédio de minha família, praticamente em frente à casa de minha avó paterna, de modo que eu podia ir lá na hora em que bem quisesse. Ele exercia sobre mim o fascínio que o desconhecido, o misterioso e o bizarro exercem sobre todos nós, crianças e adultos. Para mim, aquela sala guardava todas as surpresas do mundo. Se me deixassem mexer naquelas prateleiras, naquelas gavetas, com certeza encontraria um tesouro: contos de fadas antigos, bonecas de vários tamanhos e aparências, caixinhas de vários modelos e tudo o mais que a fantasia infantil é capaz de inventar. Mas ai de mim se falasse em mexer naquelas pilhas de livros e de papéis. Eu veria a cara séria do dono do cartório ordenando-me que saísse, que voltasse para casa, pois não tinha tempo para ouvir conversa de criança com a cabeça cheia de fantasia.
        Às vezes ia ao cartório para pedir-lhe que colasse alguma coisa – um brinquedo, um livro ou um caderno. Mas isso era só o pretexto para entrar lá e, mais uma vez, soltar a imaginação à vista daquele ambiente que não tinha nada de real – e que hoje eu diria parecer mais com a biblioteca de um mosteiro medieval, com suas mil aberturas para o mistério, do que com uma repartição pública da segunda metade do século XX.
        O dono do cartório também não tinha nada de convencional, a começar pelo tamanho. Era um homem muito alto que, na minha perspectiva infantil, devia ter perto de dois metros. Forte, sem ser gordo, só andava de terno escuro – paletó e gravata – e de chapéu. Exalava um cheiro bom de charuto, que anunciava a sua aproximação, mesmo nos lugares abertos. Era, pois, a figura ideal para despertar a fantasia infantil. Seria o rei de um país distante, disfarçado de tabelião? Um Merlim extraviado nos tempos modernos? Ou o gigante das botas de sete léguas, que se perdera nas dobras do tempo? Vai ver que para os adultos e para as outras crianças ele era simplesmente o seu Júlio Barbosa, sem mistério na manga e sem nenhum segredo escondido atrás das portas do cartório.
        Para a nossa família ele não era somente o Júlio Barbosa tabelião. Ele era o Padim Júlio (pronunciado assim mesmo como escrevi) de todo mundo. Grande amigo de meu avô paterno, Raimundo Francisco, jamais vacilou em sua fidelidade à família Jaguaribe. Era respeitado pelos jaguaribes mais jovens como se fora a reencarnação do avô que nenhum de nós conhecera. Não um respeito imposto, mas um respeito conquistado pela afeição de anos e anos, demonstrada na convivência marcada pela lealdade.
        Minha irmã, Francisca Marta, então, tinha um afeto todo especial por ele. No altar de seu amor infantil, ela canonizara três santos: nosso pai, nosso tio paterno, tio Dedé, e o Padim Júlio. Lembro-me de uma noite em que faltara energia e se acenderam faróis, lamparinas e lampiões a gás. De repente, vinda da calçada, uma voz ordenou, referindo-se a um certo tipo de besouro: Mata, mata, é um capa-homem. Ouviu-se então o choro de minha irmã, que suplicava à nossa mãe: Mamãe, não deixe ele capar nem o papai, nem o tio Dedé, nem o Padim Júlio!
        O Padim Jùlio enviuvara muito jovem, aos 36 anos, e ficara com cinco crianças pequenas, que criaria sozinho, se não fosse a ajuda da Maroca, irmã de sua esposa. Nunca voltou a casar para não entrar em choque com os filhos.
        Mas tinha um gênio meio difícil o nosso Padim Júlio: magoava-se com muita facilidade, e seu poder de explosão era quase o da dinamite. Lembro-me de que, nos domingos, íamos eu e minha irmã passar o dia em sua casa, levadas pela Madalena, sua filha mais nova. Havia, no entanto, uma recomendação: silêncio absoluto, depois do almoço, para não perturbar-lhe o sono. Já acostumadas a respeitar em casa o horário do sono de nosso pai, comportávamo-nos conforme o recomendado. Depois que ele acordava, podíamos falar alto e brincar como quiséssemos. E eu percebia o olhar de carinho que ele nos lançava.
        Conta a Madalena que, quando foi nossa professora no Grupo Escolar Manuel Sátiro, ele se preocupava com o nosso desempenho e, de vez em quando, recomendava: Cuidado para não ser muito rigorosa com as meninas do Chico. Não as reprove.
        Seu primeiro neto foi o filho único da Madalena, o Júlio César, que nasceu e morou muito tempo em São Paulo, de modo que o avô não o via com frequência. Mas todos percebiam a alegria e a emoção com que o recebia nas poucas vezes em que vinha a Jaguaruana. E lembro-me do ar de orgulho com que saía à rua, segurando o menino pela mão. Depois vieram os outros netos, filhos do Luís, dois meninos e uma menina, e o procedimento era o mesmo.
        Recordo o pesar de nossa família quando ele foi acometido de câncer na garganta. Fui visitá-lo quando estive de férias em Jaguaruana. Ele já estava magro, fraco e tinha dificuldade de falar, mas ainda sentou-se na cadeira de balanço e conversou conosco. A última lembrança que tenho dele é a de um homem com o semblante triste, de pijama e de chinelo, com um lenço amarrado no pescoço. Era julho de 1971, e ele morreria naquele mesmo mês, as 71 anos, em plena Festa de Santana, padroeira da cidade.
        Mas essa lembrança não obscurece aquela mais antiga, do mágico dono do cartório, que preencheu de fantasia os dias de minha infância. Muito menos aquela outra do homem de quase dois metros de altura, de terno escuro e chapéu, que passava em frente à minha casa em direção à Igreja Matriz, para assistir à missa dominical das 9 horas. Nesse momento, quando o via cumprir o ritual de todos os domingos, eu, debruçada na varanda de casa, tinha a certeza de que se encontrava tudo sob controle. E dizia para mim mesma: Está tudo bem. Tudo nos seus devidos lugares.



Aquelas duas velhas do sombrio casarão da Rua Padre Rocha



(Vicência Jaguaribe)



        Foi quase um susto o que experimentei quando soube, ou melhor, quando tive a certeza de que aquelas duas velhas que habitavam o casarão sombrio da Rua Padre Rocha, a mesma rua em que nós morávamos, eram minhas tias-avós. Chamavam-se Maria Augusta e Florinda e eram irmãs de meu avô materno, João Luís de Freitas, o João Lucas, que não cheguei a conhecer. Viviam na companhia de uma sobrinha também já meio envelhecida, a Clotilde – agora eu sabia –, minha prima em segundo grau.
        Clotilde era filha de uma outra irmã de meu avô, a Tia Rosa, que morava em Limoeiro e tinha, para usar o estilo bíblico, outros filhos e filhas: Augusto, José, Antônio; Mirosa, Hilda, Maria e Francisca. Ufa! Tanto filho assim bem merece uma referência em estilo bíblico. Não foi à toa, pois, que ela dera a Clotilde para ser criada pela irmã infértil (Ou era baco o marido? Naqueles tempos, não se podia determinar o verdadeiro culpado.).
        Clotilde... esse nome me fascinava: nome de personagem de livro (lembro-me de que havia uma Clotilde em um dos pequenos textos do meu livro do 1º ano). Afora essa prima, não conhecia alguém real que se chamasse Clotilde. E, para aumentar o fascínio, a C-l-o-t-i-l-d-e (sintam como é prazeroso pronunciar esse nome; experimentem pelo menos a primeira sílaba), a Clotilde fazia flores de papel. Vocês conhecem alguma Clotilde fora dos livros? E alguma Clotilde que faz flores?
        Sempre ouvira minha mãe referir-se àquelas duas velhas como Tia Maria Augusta e Tia Fulurinda, mas cabeça de criança tem um imperceptível e indefectível escudo protetor: só entende o que quer e o que lhe interessa entender. Pois é, lá dentro, bem escondidinho, na gruta mais profunda do meu inconsciente, estava a negação desse parentesco. Talvez eu até tivesse certeza dele, mas me negava a aceitá-lo. Aquelas duas velhas eram motivo de chacota: pobres, mal vestidas e mal asseadas; rabugentas e avaras (mas quem não é avarento vivendo na pobreza quase absoluta?!), constituíam alvo fácil para os engraçadinhos e para as crianças que brincavam por perto. Além do mais, minha mãe nunca nos falara delas como parentas, nunca nos mandara tomar-lhes a bênção, um costume da época. Nunca a vira, nem a nenhum de seus irmãos, dar-lhes uma ajuda. Acho que rejeitava não somente aquelas duas velhas, rejeitava também o que eu achava ser a atitude de minha mãe e do resto da família em relação a elas.
        De sua avareza (a avareza é algo que meu espírito quase perdulário dos jaguaribes resiste em aceitar), conta-se o seguinte episódio.
        Era 1938. A Tia Maria Augusta perdera naquele dia o marido – o maestro Raimundo Correia, que, segundo os comentários da família, era um grande regente, convidado a reger em todo o Vale do Jaguaribe. Muito bonito, muito artístico, se como marido não fosse também... um grande maestro. Não que tratasse mal a esposa, mas não era o macho provedor. Pois bem, o caixão encontrava-se na sala, rezava-se o terço, e a Clotilde chorava pelo pai adotivo que perdera. A Tia Maria Augusta, viúva sem lágrimas, sentada perto do caixão, com o terço enrolado no braço, refletia. Sobre o quê? Este é um segredo que anos depois levaria consigo para o outro mundo. De repente, um chamado afastou-a dos pensamentos. Levantou-se e foi atender a um freguês da pequena bodega que mantinha em casa.
        - Pronto, seu Manuel, um quilo de farinha.
        E seu Manuel, talvez por engano, talvez não, entregou-lhe a quantia incompleta.
        Irritada, depois de contar o parco dinheirinho (ela amava os diminutivos), Tia Maria Augusta pôs as mãos nas cadeiras avantajadas:
        - Seu Manuel, Raimundo morreu, mas eu não fiquei doida não.
        Outra historieta que se conta daquelas velhas mostra o estado de senilidade que haviam alcançado.
        Tia Fulurinda há dias queixava-se de um panarício no anular da mão direita. Tia Maria Augusta (a Magusta) preparou um emplastro e o aplicou no dedo doente da irmã. Horas depois, como a dor tivesse aumentado, Magusta fez outro emplastro e amarrou-o, bem mais quente do que o primeiro, no dedo de Tia Fulurinda. O tratamento já durava três dias e a dor não cedia, ao contrário, aumentava a cada hora. Clotilde, então, intrigada, resolveu examinar a doente. O anular da mão direita apresentava uma queimadura de segundo grau, e o da mão esquerda exibia um imenso inchaço recoberto por uma forte vermelhidão.
        Tia Maria Augusta era uma inconformada com a pobreza, embora fosse católica fervorosa. Espírito pragmático, não entendia por que tinha de ser pobre. Quando a Altina, afilhada e velha amiga dos tempos do Giqui, distrito em que nascera, vinha cumprir o ritual da visita diária, ela sempre se queixava das dificuldades financeiras. Naquele dia, a Altina lhe fez uma preleção, exortando-a a ter paciência e a conformar-se com a pobreza, uma condição de vida abençoada por Deus.
        - Madrinha, veja o exemplo de São Francisco. Abandonou o conforto da casa do pai, doou toda a herança que lhe cabia e foi trabalhar com os pobres. Quando pedia comida nas casas, insistia em comer da lavagem dos porcos.
        Tia Maria Augusta, já irritada com a longa preleção, levantou-se da cadeira de balanço e, com a cara de nojo e o tom de voz grave, balançando o corpo como de costume, soltou o torpedo:
        - Altina, São Francisco era um porrrco!
        Alguns anos mais tarde, quando voltei de férias a Jaguaruana, o casarão sombrio estava fechado e tinha outro dono. Aquelas duas velhas, juntamente com a sobrinha, já haviam morrido. Tia Maria Augusta, em Jaguaruana mesmo. Clotilde e Tia Fulurinda, em Limoeiro: a primeira, em 1958; a segunda, em 1962, aliás, no mesmo ano e dia em que morreu também a Tia Rosa. As duas vieram juntas enterrarem-se em Jaguaruana, onde também fora sepultada a Clotilde.
        Hoje, para mim não é problema dizer que são minhas tias-avós aquelas duas velhas que moravam no velho e sombrio casarão da Rua Padre Rocha.


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