Contos







Retorno à casa materna


(Vicência Jaguaribe)



            Mundo velho sem porteira! Nunca esquecera a frase da velha Bibiana, personagem de O tempo e o vento. E repetia-a para si mesma quando se surpreendia com os acontecimentos que desorganizavam o bom senso da rotina. Pois foi essa frase que ela sussurrou quando o carro parou em frente à casa dos pais: Mundo velho sem porteira.
            Estava um dia chuvoso, e ela ficou esperando que o marido tirasse a bagagem do carro. Olhou a casa de muro alto onde vivera os últimos dias da infância, a adolescência e os primeiros anos da juventude, até casar. Mas naquele tempo – final da década de cinqüenta – o muro da casa era baixo, dava até para sentar nele. Tinham-se mudado para um bairro novo, e a família dela fora uma das primeiras a habitar aquela rua. Havia por perto muitos terrenos baldios cortados por pequenos cursos d’água. Para ir à missa na igreja do bairro, recém-construída, passava-se por esses terrenos, por sobre cujos riachos se punha uma tábua comprida e larga, que servia de ponte.
            Era um tempo em que as crianças podiam brincar à noite no meio da rua, sem perigo de serem atropeladas, assaltadas ou sequestradas. E, enquanto brincavam, elas ouviam o grito de Doce gelado! Olha o doce gelado! – era assim que se chamava sorvete e picolé naquele tempo. E os pais, que já haviam separado o dinheiro trocado, iam para a calçada comprar o doce gelado, vendido em uma casquinha que a meninada achava mais gostosa do que o doce. Ela sempre pedia o de coco, uma delícia!
            Agora, o bairro e a rua estavam muito diferentes. Passava uma larga avenida por onde antes corriam os riachos, e algumas casas tinham cedido lugar a prédios de apartamento. Deixou as lembranças no passado, quando a mãe abriu a porta do carro: Vamos, minha filha, eu te ajudo a descer. Olhou para a mãe com os olhos afogando-se em lágrimas, que recuaram ante um largo sorriso de boas-vindas. Deixou que a mãe a amparasse – ela quase a carregou nos braços, como se fosse uma criança. Aliás, devia estar mesmo com o peso de uma criança. Sentiu-se confortada com os braços da mãe ao redor de seu corpo. Relaxou e deixou-se levar. Deu graças a Deus pela fortaleza daquela mulher, mãe de muitos filhos, mas que continuava bem disposta.
Ela voltava a casa para morrer ao lado da mãe. Casara e fora morar em outro estado, a terra do marido. Tivera uma única filha e fora muito infeliz com ele – um conquistador barato, que não respeitava nem mesmo a casa onde morava com a filha e a mulher. Grosseirão e autoritário, tratava-a com desprezo. Ela, que sempre fora passiva, aguentara tudo calada, até que um dia apareceu o câncer na mama esquerda. Agora, estava ali, de volta à casa materna. Queria passar seus últimos dias com os pais e os irmãos.
Quando entrou na sala de visitas, ouviu, vinda do passado, a voz da mãe: Estão levando a merenda? E ela se viu de farda — uma vestimenta azul-marinho, com saia de pregas e alças largas, saindo de uma espécie de pala costurada na saia e que se ajustava ao corpo. E respondeu, naquele momento, à pergunta feita pela mãe há... dez? quinze? vinte? anos atrás? A mãe surpreendeu-se: - Que foi que você disse? - Nada, mãe, estava pensando alto.
A viagem cansara-a, e ela pediu para deitar-se. A porta do quarto, aberta, permitia-lhe ver, pela janela, o muro lateral — baixo — da casa vizinha. Mundo velho sem porteira! Disse novamente para os seus botões. Por sua cabeça passaram as cenas daquele dia. A dona da casa vizinha, cunhada de seu noivo, fora dar-lhe a notícia: o Sérgio sofrera um acidente de moto e morrera na hora. Ela passara dois meses deitada, sem receber visitas, chorando a maior parte do tempo e pedindo ao noivo que a levasse. Depois que chorou todas as lágrimas, recitou todas as preces e não ouviu resposta nenhuma, levantou-se cambaleando. Pediu à mãe que lhe preparasse um banho quente e uma merenda. Alimentada e banhada, foi à casa vizinha, onde conversou com o irmão do noivo por muitas horas. Falou descontroladamente sobre os planos dos dois, sobre as promessas de amor eterno; falou sobre as preferências musicais e literárias dele; sobre as discussões e as brigas que tiveram; sobre o grande amor que ela sentia por ele... Ao voltar para casa, havia encerrado aquela etapa de sua vida. Nunca mais pronunciou o nome dele. Mas também nunca mais amou alguém como amara a ele.
Quando a mãe entrou no quarto, levando-lhe uma xícara de mingau, disse-lhe que a casa vizinha fora vendida e nela habitava agora outra família. Ela nada disse.

Trinta dias depois, acordou com alguém passando a mão em sua cabeça. Já não se levantava mais e mal se alimentava. O médico fora sincero com a família. Ela poderia morrer a qualquer instante. Quando sentiu o carinho nos cabelos, abriu os olhos com dificuldade e, à luz do pequeno farol que estava perto da porta, ela o viu sorrindo-lhe. Retribuiu o sorriso com um esgar de dor. Fechou os olhos. Agora, terminaria seu sofrimento, sua luta e sua espera. Partiria em paz. Podia, finamente, despedir-se deste mundo. Mundo velho sem porteira!







Maria das Graças


(Vicência Jaguaribe)



O problema da Maria das Graças não era ser pobre e feia. Aliás, não era tão pobre nem tão feia. Até que tinha uma presença agradável. Mas não conseguia segurar namorado. Os rapazes se aproximavam, conversavam com ela uma noite, duas noites, no máximo, e não retornavam. Isso já a estava preocupando, afinal, chegara aos vinte e sete anos. Todas as suas amigas já haviam casado e tinham filhos. E logo ela, com tanta vontade de constituir família, ter um marido e filhos! Esse era o sonho de sua vida. Quando retornava das festas, dos passeios, das saídas, enfim, a pergunta inevitável da mãe:
— Nada, filha?
— Nada, mamãe.
            — A conversa, minha filha, a conversa. O que você conversa com os moços?
            — Ora, mamãe, falo em casamento e filhos...
            — É isso, eles se sentem pressionados.
            Na festa seguinte, tentou agir de outra maneira. No começo, até que conseguiu. Mas no meio da noite voltou ao tema casamento. O rapaz, animado no início do baile, murchou que nem uma muda de planta sem água. Pediu licença, desculpou-se, inventou uma dor de cabeça repentina e foi embora.
            Ansiosa, a mãe abriu a porta:
            — Nada, filha?
            Com voz triste:
            — Nada, mamãe.
            Aos trinta anos, ela deixou de esperar por um namorado, expulsou a ideia de casamento e de filhos do centro de sua vida. Dedicou-se ao trabalho: era funcionária do único cartório da cidade. Agora, quando um rapaz se aproximava, ela não o via mais como um provável futuro marido. Falava tranquilamente com ele, e nem pensava na possibilidade de que aquele homem ou outro qualquer se interessassem por ela.
            — Quem vai querer casar com uma moça de trinta anos, mamãe. Desisti. Posso muito bem viver sem um marido.
            — E seus sonhos de ter filhos, de constituir família?
            — Sonhos. Disse sonho? Isso mesmo. Eram sonhos e sonhos são quimera, fantasia... desmancham-se no ar.
            A vida continuou sem surpresas e sem sobressaltos. Mas a Gracinha perdera o entusiasmo. Até que, um dia, chegou à cidade a única coisa que conseguia arrancá-la da sensaboria em que se transformara a sua existência: um circo mambembe. Sim, um circo pobre e de má qualidade, daqueles que costumavam andar pelos sertões do Nordeste, nos tempos de antes: lona furada, cadeiras pouco confiáveis, trapezistas raquíticos e com cara de fome, mocinhas e velhotas de cabelo oxigenado, domador de animais velhos e desdentados, palhaço de aspecto triste e sem ânimo. Mas, principalmente, um apresentador, também dono do circo, com infalível e falso sotaque espanhol.
            Maria das Graças, ou Gracinha, tinha paixão por circo. Não se importava com a lona rasgada, com os trapezistas que repetiam sem nenhuma novidade os mesmos movimentos, com o palhaço sem graça. Ela gostava de circo não pela atuação dos artistas, mas pela aura romântica e aventuresca que o cobria e sublimava os buracos da lona, a mesmice dos números, a tristeza do palhaço, a pouca flexibilidade da mocinha contorcionista. Quando entrava em um circo, penetrava em um mundo paralelo: um mundo onde não havia rotina; tristeza, desilusão. Onde os sonhos se tornavam realidade.
            Na noite da estreia, a Gracinha pôs seu melhor vestido, aquele vermelho que ela guardava para as grandes ocasiões, e calçou o único sapato apresentável. Fez uma maquiagem discreta, borrifou um pouco de perfume nos cabelos castanhos e fartos. Pegou uma bolsa vermelha, onde colocou o dinheiro da entrada e mais uns trocados para a pipoca.
            — Mãe, estou saindo. Vou me encontrar com as meninas. Sua bênção.
            — Deus te guarde. Que ele te leve e te traga.
            Ela foi direto ao local onde se instalara o circo. Não se encontrou com ninguém. Aquela noite, queria vivê-la sozinha, sem testemunhas. Algo lhe dizia que um acontecimento inesperado mudaria sua vida.
            Olhou pela pequena abertura na lona que fazia as vezes de porta. No interior, dezenas de pessoas — homens e mulheres; crianças e velhos. E, agora, ela. Afastou um dos lados da porta e entrou. Estava ansiosa, com o coração batendo forte. Sentou-se em uma cadeira perto do palco, um dos poucos lugares disponíveis.
            Olhando em volta, fez lá suas singelas reflexões: nem o cinema nem a televisão conseguiram destruir a magia do circo. Dentro de alguns minutos pisará no picadeiro o apresentador, falando o portunhol. Oh! o sotaque estrangeiro daquele homem aumentava o toque de magia do ambiente. Ah! os falantes do espanhol! Os argentinos, os próprios espanhóis, os guatemaltecos, os mexicanos... homens bonitos, arrebatados, ardentes, passionais — pensou a Gracinha com um tantinho de mágoa da vida, do destino, de Deus.
            A entrada do trapezista arrancou-a das considerações. Nos seus olhos, ou melhor, na sua fantasia, o trapezista era forte, bonito, moreno e ostentava um par de olhos verdes. Olhos verdes! A cor da traição.
            Mal ela concluiu o pensamento, viu línguas de fogo lamberem e  devorarem com sofreguidão quase toda a velha e suja lona. E depois espalhar-se pelas cadeiras, em ritmo vertiginoso. Ali agiam monstros famintos e insaciáveis. Logo logo o fogo chegou à fileira em que a Gracinha se encontrava. As pessoas sentadas perto dela conseguiram escapar, ampliando um rasgão na lateral da lona. Mas a Gracinha não se mexia. Olhava o palco, ainda não atingido pelas labaredas. Devo salvar o palco. Sem ele, o circo morrerá. E o circo não pode morrer.
            Subiu ao palco no momento exato em que o fogo o atingiu fazendo-o desmoronar. E, com ele, foi a Gracinha.
A moça viajou cedo demais? Não temos a resposta. Só podemos dizer que chegara a sua hora. Quem sabe se lá, pelas terras do infinito, para onde partiu, ela não encontre um circo com uma rica e colorida lona; um palhaço engraçado e feliz; um domador forte, que bate o chicote no chão para levar animais novos e selvagens a fazer peripécias de estarrecer; um dono de circo apresentando os artistas em um espanhol perfeito; mulheres jovens ostentando cabeleiras de louro natural. Mas, principalmente um trapezista com a cara e os músculos de Johnny Weissmuller.









A outra negra Fulô

(Inspirado no poema
 “Essa negra Fulô”,
de Jorge de Lima)


(Vicência Jaguaribe)


Ora, se deu que chegou 
(isso já faz muito tempo) 
no banguê dum meu avô 
uma negra bonitinha, 
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

(Jorge de Lima. “Essa negra Fulô”)


Adicionar legenda

            A chegada da negra Fulô no Engenho do Monte foi um xeque-mate na felicidade da Sinhá, que casara virgem e confiante no amor de folhetim que sempre pensara dedicar ao marido, quinze anos mais velho do que ela. O Sinhô — era assim que o tratava — conhecera-a quando ela ainda era um bebê. De olho no patrimônio do velho Coronel, pai dela, empenhou-se naquela união, que as duas famílias trataram de sacramentar com o empenho da palavra e de dois ou três fios dos bigodes.
            Nascida e criada na casa grande de um dos engenhos do pai, com rápida passagem por um internato de freiras, a menina conhecia o tipo de casamento a que as moças brancas estavam sujeitas. Mas, assim como alguém que sempre teve a vista curta pensa que enxerga bem porque não sabe como é ter uma vista sã, ela achava que todo casamento era daquele jeito e conformava-se. Havia em cada engenho daqueles espalhados pelo país um harém disfarçado. O dono das terras tinha filho de todas as cores, porque estavam a seu dispor, além da Sinhá, esposa oficial, as negras e mulatas da senzala. Algumas o recebiam contra a vontade, mas outras se deitavam com ele por prazer e até com certo orgulho e vaidade. Algumas, inclusive, agiam como se aquela relação, de certa forma, as vingasse da escravidão, dos maus tratos e das humilhações que sofriam da patroa.
            Pois chegou a negra Fulô no banguê do Sinhô, quando a Sinhá já lhe dera quatro filhos. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! Até aquela data, o Sinhô mantivera as aparências, e as negras com quem se deitava nunca eram levadas para a sede do Engenho do Morro. Mas naquele setembro, quando ele chegou com a negrinha Fulô, novinha, quase uma menina, bonitinha, de porte elegante e olhar desafiador, a Sinhá sentiu o solo tremer como se estivesse no epicentro de um terremoto. E sentiu o tremor intensificar-se quando, por ordem do Sinhô, a negrinha Fulô ficou logo pra mucama, / para vigiar a Sinhá / pra engomar pro Sinhô.
            E a negrinha Fulô começou por fazer o que toda mucama faz: cuidar das crianças, auxiliar a patroa nas suas pequenas necessidades — preparar-lhe o banho, ajudá-la a vestir-se e a pentear-se, fazer-lhe cafuné, abanar-lhe o corpo, coçar-lhe a coceira e balançar-lhe a rede. Mas a negrinha Fulô, apesar do nome, não era flor que se cheirasse. E, desde o primeiro dia naquele engenho, sentiu que poderia tirar proveito da insegurança da Sinhá e dos desejos do Sinhô, que lhe gotejavam por todo o corpo, ensopando-lhe a roupa.
            No dia em que desapareceu o frasco de cheiro da Sinhá, a negrinha Fulô foi castigada pelo feitor, castigo a que o Sinhô fez questão de assistir. E creiam que a vista do Sinhô escureceu, que nem a negra Fulô, quando ela tirou a roupa. Ao  desaparecerem outros mimos da Sinhá — um lenço de rendas, um cinto e um broche e mais um terço de ouro —, o Sinhô fez questão de açoitar sozinho a negra Fulô. E a Sinhá cansou de esperar que o marido voltasse do quarto do castigo. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!
            Naquela noite, a Sinhá mandou a negra Fulô fazer um chá de capim-santo forte e com muito açúcar mascavo. Não conseguia dormir. Em seus pensamentos, a imagem da negrinha Fulô tirando a roupa para o Sinhô lhe bater: aquele corpo de ébano cheirando a flor de laranjeira, pulando nuzinho de dentro do cabeção. Ao seu lado, na cama, o Sinhô dormia e roncava. E, de vez em quando, um sorriso desanuviava o rosto daquele homem rude como se ele estivesse vivendo um momento de grande felicidade. Somente quando a madrugada já ameaçava clarear é que a Sinhá adormeceu. Adormeceu para cair num pesadelo que colocaria um pouco de sal e de perfume na sua vida insípida e inodora.
            Estava sozinha na cama. O sinhô, como sempre, acordara antes do sol, para começar os trabalhos do engenho. Abriu os olhos com a mucama puxando as cortinas do quarto e dizendo-lhe a hora. De onde saíra aquela mucama de pele clara e cabelos aloirados? O marido estava, agora, comercializando escravas brancas? Em um movimento rápido levantou-se da cama e viu uma imagem refletida no grande espelho da parede em frente. Não pôde reprimir um grito. No reflexo do espelho quem se projetava era a negra Fulô, com seu ar atrevido, sua carapinha recendendo a flor de laranjeira e o corpo esguio, mas bem torneado, que sempre a impressionara. Que estava se passando? O corpo era o da negra Fulô, mas o espírito, a alma, os sentimentos e os pensamentos eram seus. Ela sentia e pensava como a Sinhá branca que era, e não entendia o que estava acontecendo. Olhou para o lado e viu seu próprio corpo vestindo os trajes da negrinha Fulô, humildemente esperando as ordens da Sinhá. Estarrecida, sem entender o que ocorria, mas experimentando certa sensação de bem-estar e de gozo, ordenou à mucama que lhe preparasse o banho.
            Arrumada com a ajuda da negrinha, foi tomar o café da manhã. Mas estranho! Ninguém parecia perceber a transformação. Ninguém observava sua pele negra e seu cabelo preso em um lenço colorido, como usava a negra Fulô. Quando o marido sentou-se na cabeceira da mesa, para tomar o café, olhou-a, porém, com um olhar que parecia desnudá-la e que lançou chamas em seu rosto. Ela baixou a cabeça, envergonhada, mas algo a fez reagir, e ela o olhou de frente e sorriu com o sorriso desafiador, maroto e sensual da Negra Fulô. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!
            À noite, o sinhô quis recolher-se mais cedo e a possuiu com o ardor e a selvageria que caracterizavam, ela ouvira dizer, as relações entre senhores brancos e escravas negras. E, naquela noite, ela foi feliz como nunca havia sido e jamais pensara que pudesse ser. As sensações que experimentou, inconfessáveis, ficariam guardadas para sempre em sua memória. Um grito de prazer — dela, do marido? Não sabia. — tirou-a do pesadelo e a despertou. Estava sozinha na cama. Com o corpo molhado de suor e ainda desejando o corpo do Sinhô, ela abriu os olhos e viu-se no espelho. Voltara a ser a Sinhá de sempre. Postou-se em frente ao espelho, tirou a camisola e passou as mãos pelo corpo, ainda trêmulo de desejo. Fora realmente um pesadelo. Quando a negra Fulô entrou no quarto para preparar-lhe o banho, encontrou-a ainda defronte ao espelho, a cara meio esquisita. Parecia outra pessoa: adquirira outra postura e enfrentava-a com um sorriso de desafio. A negrinha não podia nem desconfiar, mas era ela quem estava ali, era seu espírito que agora habitava o corpo branco da Sinhá. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!
            A partir daquele dia, o Sinhô não mais procurou a negra Fulô, nem mais se interessou em vê-la apanhar do feitor. Não sabia o que acontecera, nem queria investigar o fenômeno, mas, quando se deitava com a Sinhá, parecia ter nos braços uma mulher dividida em duas, uma das quais tinha o fogo e a insaciabilidade da negra Fulô. Isso o deixava muito feliz, levava-o ao sétimo céu. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!
            Um mês depois do ocorrido, a negra Fulô foi vendida a outro dono de engenho, sem que o Sinhô nem ao menos a olhasse. Ele tinha outra Fulô à sua disposição. Duas eram demais até para o seu apetite desenfreado. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!





Mas a vida... a vida não se passa a limpo



(Vicência Jaguaribe)

         






















        


       








      A velha senhora entrou no compartimento que sempre lhe servira de biblioteca e de gabinete. Em um tempo em que a maioria das mulheres se dedicava às tarefas domésticas, aos cuidados com os filhos e com o marido, ela passava horas naquela sala lendo e escrevendo. Quando o noivo mandara construir a casa onde morariam depois de casados, ela só fizera uma exigência: um aposento onde pudesse guardar seus livros, onde pudesse isolar-se para ler e escrever. Nem ao menos perguntara quantos quartos ou quantos banheiros teria a casa, nem quisera saber o tamanho da cozinha. A casa tinha quintal, ficava do lado da sombra ou do sol? Disso ela não quisera saber. Não desperdiçaria seu tempo com coisas desse tipo.
       Puxou a cadeira do birô, sentou-se e aproximou o porta-retrato com uma fotografia do dia do casamento: ela e o noivo... não, ela e o marido. Quando tiraram aquela foto já eram marido e mulher, fora logo depois da cerimônia. Passou a mão sobre a imagem do marido e recordou como ele fora apaixonado por ela. Uma paixão que a rotina do casamento não conseguira esfriar. Diante do desinteresse dela pelos assuntos domésticos, das horas que roubava da convivência com ele e com os filhos para dedicar à leitura e à composição de seus textos, sua paciência era uma fonte inesgotável, que parecia renovar-se todos os dias.
            Sabia não ter sido uma boa mãe. Não se enquadrava nos parâmetros que determinavam se uma mulher era uma boa mãe. Nunca se entusiasmara com a maternidade e não escondera isso do noivo. Chegara mesmo a dizer, para escândalo dos futuros sogros, que não pretendia ter filhos. Seus pais não se horrorizavam mais com suas opiniões e posições fora dos eixos, conforme diziam. Ela fora assim desde pequena. Fazia tudo diferente das irmãs. Não obedecia ao horário convencional de dormir nem de comer, nunca se adaptou às imposições da escola, não gostava do que as outras meninas de sua idade gostavam. Era um astro que determinava sua própria rotação, não lhe importando se as leis da Física mandavam ir para a direita ou para a esquerda. Diante do inexorável, os pais tiveram que capitular.
            Ele, o marido, nunca reclamara de seus desvios do eixo da rotina. Amara-a incondicionalmente até o fim da vida. Ela lhe dava a impressão de que estava sempre na expectativa de que algo acontecesse. A si mesmo ele dizia que a mulher vivia sempre de véspera; para ela nunca chegava o dia d. Sabia que escrevia muito, mas nunca conseguira que ela lhe mostrasse – a ele ou a outra pessoa – os textos que produzia. Quando entrava no gabinete e surpreendia-a escrevendo, pedia-lhe permissão para ler o produto da vez. A resposta era sempre a mesma:
            - Não, agora não. Ainda está no rascunho, quando passar a limpo, você o lerá.
           E ele não insistia. Respeitava-a e amava-a demais para forçá-la a fazer qualquer coisa que a deixasse contrariada ou constrangida.
        A velha senhora levantou-se e passou em revista as estantes com seus livros. Diante dos seus preferidos, parava. Retirava um ou outro, folheava-o rapidamente e  recolocava-o no lugar. Aproximou-se da estante em que guardava os livros infantis – alguns de seu tempo de criança, outros comprados para os filhos. Era uma das poucas coisas que a incomodavam na vida. Falhara com as suas duas crianças, porque não conseguira passar-lhes seu amor pelos livros, sua devoção à literatura, seu gosto pela prática da escrita. Parece até que trabalhara no sentido contrário – fizera-os afastar-se dos livros. Era como se, agindo assim, eles se vingassem das horas que ela lhes roubava para dedicar à leitura e à escrita.
       A família inteira – a dela e a do marido – ironizava o seu comportamento. De vez em quando, em tom de chacota, perguntavam pelos livros que ela sempre dissera que, um dia, publicaria. Quando pediam que lhes mostrasse algo escrito por ela, qualquer coisa que fosse – um conto, um poema –, nem que estivesse inacabado, ela dava a mesma resposta:
            - Ainda está no rascunho. Quando passar a limpo, eu mostro.
          Aproximou-se do arquivo – grande e trancado a chave – onde todo mundo sabia que ela guardava as produções literárias que ninguém nunca lera. Tirou do bolso a chave e abriu-o. Dentro, inúmeras pastas, todas elas identificadas e datadas. Sabia que muitas pessoas duvidavam de que ela, algum dia, houvesse realmente escrito alguma coisa. Quem escreve, escreve para ser lido. Ela, não. Nunca tivera coragem de mostrar a alguém um texto seu. Quantas vezes o marido não tentara convencê-la a selecionar uns manuscritos para publicação. Ele financiaria. Mas ela tinha a mesma resposta:
           - Não. Ainda não está na hora. Ainda está no rascunho, ainda tenho que passar a limpo.
          Por que agia assim? Não sabia ao certo. Nos outros setores da vida era resolvida, independente, não aceitava imposição de ninguém. Que mistério era esse que só existia quando se tratava de sua produção literária? Depois que o marido morrera, ela jurara a si mesma que faria o que ele tanto lhe pedira: daria a forma definitiva a alguns contos, a algum romance, isto é, os arrancaria da condição de rascunho, e os levaria a uma editora. Mas, quando pegava uma pasta e tentava fazer a versão final de um texto, por mais simples que fosse, fazia não a versão final, mas uma nova versão, cheia de emendas, cheia de palavras riscadas e substituídas. Produzia outro rascunho.
      E o tempo foi passando. E a cada dia ela se sentia mais angustiada, mais insatisfeita, mais incompleta. Enquanto era nova, achava que daria tempo. Um rascunho a mais, um a menos... teria muito tempo ainda. O que a levava a agir dessa maneira? perguntava-se com frequência. Agora, nos últimos anos, mais do que antes. Nunca exigira dela mesma – nem dos outros – que fizessem as coisas com perfeição. Não era nem um pouco perfeccionista. Não, pelo menos nas outras esferas de sua vida. Ao contrário, era até meio desleixada. Mas também nunca se entusiasmara realmente por nada, a não ser pelos seus livros e pelos seus escritos. Não amara o marido como ele merecia ter sido amado; não agira como uma boa mãe; não fora nem era uma mulher feliz; nunca se sentira plena, realizada. Sabia que sua realização dependia de sua capacidade de vencer o medo – o medo da opinião dos outros, das críticas especializadas e não especializadas, sobre o que produzia. Dependia da ousadia de desengavetar seus escritos e expô-los. Enquanto não tivesse a coragem suficiente de tirá-los da condição de rascunho, enquanto não lhes desse uma versão final, seria como se estivesse esperando também da vida uma versão definitiva.
        Será que, se conseguisse a façanha de sair da estação do rascunho, estaria realizada, chegaria à conclusão de que a vida valera a pena? Resgataria alguma coisa que se perdera no tempo?
Tentou abrir a segunda gaveta do arquivo e alcançar uma pasta que ostentava, em letras grandes, o rótulo Minha vida em rascunho. Foi esforço demais. Ela sentiu uma pontada no peito e uma forte dor espalhando-se pelo braço esquerdo. Ainda conseguiu puxar a pesada pasta, mas desequilibrou-se e caiu. Não de uma vez, mas lentamente. Tentou evitar que os papéis guardados na pasta se espalhassem, mas não conseguiu. Já meio inconsciente, ela via um livro em cada folha que caía da pasta – eram livros de várias cores e tamanhos, que se acumulavam ao seu redor. E esboçou um sorriso quando o último livro se abriu diante de seus olhos, como se alguém o estivesse segurando para que o visse – e era ela a autora.
         Seu último pensamento traduziu algo que ela sempre soubera, mas nunca tivera coragem de admitir – seus escritos em rascunho eram a representação de sua vida incompleta. Tirar da forma de rascunho aquilo a que dedicara toda a existência seria uma maneira de dar plenitude à vida. Seria transformar em realidade um sonho por meio do qual sua vida adquiriria sentido. Nesse momento, no entanto, um diabinho pulou no seu ombro e soprou no seu ouvido: Um texto pode ficar em forma de rascunho até alcançar sua forma definitiva. Com a vida é diferente. A vida não nos oferece uma chance de passá-la a limpo. A vida fica sempre no rascunho.
        Algumas horas depois, quando a empregada entrou no gabinete para fazer a arrumação diária, encontrou-a coberta por folhas de papel, cheias de emendas e de riscos, umas escritas a lápis, outras a caneta. Por baixo daqueles rascunhos, a empregada perscrutou o semblante da velha senhora – nem ela nem ninguém poderiam dizer se havia em seu rosto sinais de um sorriso ou de um esgar.











De cigarro em cigarro



(Vicência Jaguaribe)


         O cigarro arde até quase lhe queimar os dedos, constantemente amarelados pela nicotina. Desde mocinha fumara muito. Beber? Bebia, mas só em ocasiões especiais, e pouco. Estava tão magra que andava meio encurvada, a corcunda acentuando-se.
     Mas nem sempre fora assim. Sua decadência alicerçara-se na desilusão amorosa e construíra-se pela vida. Seus pulmões estão totalmente comprometidos, e ela tem crises de tosse e de falta de ar. Não pode mais andar muito nem fazer os serviços da casa. Desloca-se apoiada em uma bengala. Às vezes senta-se na cadeira de balanço em frente à televisão e ausenta-se do presente. Já recordou um sem número de vezes a sua história, que bem poderia transformar-se em uma telenovela.
            A primeira imagem que lhe chega é a de um casal de adolescentes apaixonados, passeando de mãos dadas e rindo da brisa que desarrumava o cabelo dela e ameaçava levar da cabeça dele o chapéu de palhinha. Há algum tempo enfrentavam a oposição da família dele ao namoro. Ela era filha de pais separados — na década de quarenta, a separação dos pais era um estigma para os filhos. Havia ainda a crítica ao seu comportamento, que desagradava aqueles pequenos burgueses, orgulhosos e intransigentes, que, mesmo vivendo sob frágil cobertura de vidro de terceira categoria, não se cansavam de atirar pedras nos telhados dos outros.
            Ela era alegre, extrovertida, tinha muitos amigos, gostava de dançar e de passear. Fumava, bebia um pouco, falava alto e gostava de ficar horas conversando com amigos e amigas à sombra dos fícus benjamim. Era uma jovem de mentalidade moderna, muito avançada para os padrões e preconceitos da época.
            Os dois não tiveram força nem coragem para enfrentar as dificuldades. Mas eram tão jovens, adolescentes, quase crianças! E numa época em que os filhos não tinham o atrevimento de encarar os pais. Ainda tentaram resistir, mas a família dele se mudou para a capital, e tudo se tornou mais difícil.
            A segunda imagem que ela arranca da memória é a da despedida. Ele partiu prometendo que voltaria, que lhe escreveria com frequência. Mas ficou só na promessa. Depois de algum tempo, soube que ele começara a beber e tinha dificuldade para arranjar emprego. Quando sentiu ser inútil esperar, ela começou a namorar outro, com quem se casou e teve um único filho. Nunca, no entanto, amou o marido, que ela vê diante de si: um homem alto, magro e feio, que, por oposição, lembrava-lhe sempre o outro, de modo que todas as vezes em que ia com ele para a cama era com o outro que fazia amor. Seus pensamentos nunca se desviaram do outro. O filho fora gerado tendo ela o pensamento no outro.
            Antes do nascimento da criança, o casal se separou. Ela criou o filho somente com a ajuda da mãe. Um menino bom e comportado, mas que lhe lembrava o pai, e isso, às vezes, desgostava-a. Também não tinha muita disposição nem para o estudo nem para o trabalho, foi morar na capital com a desculpa de estudar. E ela ficou no interior, com seu contrato de professora. O salário quase todo ia para ele.
            Vê-se, anos depois, sentada na calçada das amigas nos fins de tarde, falando sobre o passado e cantando aquelas músicas apaixonadas, que lhe lavavam a alma. Gostava do repertório da Nora Ney e da Dalva de Oliveira: eram canções que pareciam contar a história de sua vida. E quem morava por perto ou passava nas imediações ouvia sua voz não muito forte, mas afinada:  Vivo só sem você / Que não posso esquecer / Um momento sequer / Vivo pobre de amor / À espera de alguém / E esse alguém não me quer. / Vejo o tempo passar / E o inverno chegar / Só não vejo você / Se outro amor em meu quarto bater / Eu não vou atender. / Outra noite esperei, / Outra noite sem fim / Aumentou meu sofrer / De cigarro em cigarro, / Olhando a fumaça no ar se perder...
            Um dia, quando cantava Ninguém me ama, chegou-lhe a notícia de que ele havia morrido. O organismo não suportara tanta bebida e tanta frustração. Ela calou-se e foi para casa. Sentou-se na rede e acendeu um cigarro, depois outro, e outro e mais outro, até que a luz do sol clareou o quarto.
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A casa

(Vicência Jaguaribe)



Ficara abandonada por décadas. Os proprietários haviam morrido de tuberculose e nenhum dos filhos quis continuar morando ali. Endinheirados, foram viver na capital. E ninguém na cidadezinha se atrevia a comprá-la ou alugá-la. Para aquelas pessoas simples, a maioria nascida em um tempo pré-penicilina e pré-estreptomicina, a tuberculose era uma doença tabu, cujo nome não podia ser pronunciado, sob pena de o falante se contaminar.
            Era uma construção de porta e janela, com fundo correspondente, e muito bem localizada: a cinquenta metros da igreja, na rua principal da cidade. Tinha vizinhos de um lado e de outro, sendo o do lado esquerdo um casarão assobradado pertencente a um fazendeiro, um dos homens mais arranjados da região. Mas nem esses indiscutíveis atrativos eram suficientes para que os moradores daquele lugarejo tivessem a audácia de enfrentar os fluidos malditos. As crianças, orientadas pelos pais, passavam rapidamente, sem ao menos olhá-la, quando não desciam a calçada. E criou-se todo um folclore em torno da construção: era a casa das almas; o abrigo do demônio, que seduzia os devotos que por ali passavam em direção à igreja; a pousada dos espíritos cujos corpos haviam sido aniquilados pela doença de nome impronunciável e que ainda viviam no purgatório e ali iam para pedir aos vivos o benefício de suas orações.
            Primeiro, foram os vizinhos; depois, pessoas que circulavam pelas proximidades; em seguida, os meninos pobres que passavam o dia nas ruas e sentavam na calçada, não se importando com o que diziam sobre aquela casa, muito menos com a doença que afirmavam dela emanar. Os boatos se espalharam. Foram trinta dias de suspense: segundo alguns, ouviam-se, vindos do interior da casa, barulhos de toda ordem, às vezes durante o dia, às vezes durante a noite. E, diante do olhar cético e do sorriso irônico de outros, os mais impressionados diziam ter entrevisto, pelas frestas da porta e da janela, raios de luz que desapareciam quando os curiosos tentavam aproximar-se. Alguém sugeriu serem ratos — uma casa abandonada há tanto tempo devia ser o paraíso desses pequenos roedores. Alguém teve até a audácia de pedir ao vigário uma sessão de exorcismo para limpar aquela construção amaldiçoada. O padre negou-se, naturalmente: além de ser um homem que mantinha os pés no chão, cético em relação a determinados acontecimentos vistos pelo povo como uma manifestação dos mistérios do insondável, sabia ser o exorcismo uma prática séria e perigosa. O exorcista era um religioso treinado para o embate com satanás; tinha que ter força para não sucumbir à tentação. Ele não estava preparado.
            Durante aquele mês, deu-se o novenário em louvor à padroeira da cidade. Num desses dias, à noitinha, quando um grupo de fiéis aproximava-se da igreja, um dos passantes viu entreaberta a janela da casa. Vencendo o medo, acercou-se e, olhando meio enviesado, divisou uma silhueta humana saindo do primeiro quarto, que tinha correspondência com a sala de visitas. Nesse momento, soprou um vento mais forte, que bateu a janela e fez o curioso continuar sua caminhada rumo à igreja. Sem falar nada a ninguém para não ser chamado de mentiroso.
            O fato é que aquela situação começou a incomodar os habitantes do lugarejo, que passavam o tempo livre pelas calçadas, tecendo considerações sobre o que poderia estar acontecendo: Alguém devia tomar uma providência. Arrombar a porta era ilegal?
Então, procurar os proprietários e contar o que acontecia. Pressionado, o delegado se comprometeu a comunicar-se com os herdeiros na capital.
            Na madrugada fria de uma segunda-feira de julho, o vizinho da esquerda levantou-se para ir à fazenda onde passava os cinco dias úteis da semana. Ao abrir a porta do casarão assobradado, viu alguém esgueirar-se e entrar na famosa casa. Com rapidez aproximou-se da porta antes que o tal vulto conseguisse fechá-la. Deixou os olhos se acostumarem à semiescuridão da hora e viu, com todos os sentidos, o que estava apavorando os supersticiosos: o maluco mor da cidade arrodeado de ratos que lhe subiam pelas pernas, pulavam-lhe nos ombros ou descansavam-lhe na cabeça.
            — Mas, doido Lelé, que é que você faz aqui? Como conseguiu abrir esta porta?
            — Ora, coroné, a chuva derrubou meu barraco e eu fiquei sem lugar onde dormir. Aí me lembrei deste casarããããão... vaziiiiiio, sem ninguééééém... Resolvi morar aqui.
            — E pra que tanto esconderijo?
            — Se eu pedisse pra dormir aqui, alguém ia deixar? Num ia, né, Coroné.
            — E como você entrava aqui sem que ninguém visse? E não se sentiu falta de você na rua.
— No dia que o barraco caiu, com um pedaço de arame e uma coisinha de graxa que pedi na oficina do Tião, consegui girar a fechadura e a porta se abriu. Tava tudo escuro, mas eu acendi um palito de fosfo. E vi que a casa num era desabitada, como o povo dizia. Os pequenino que o sinhô vê aqui me receberam muito bem, e a gente ficou amigo. Quando quero sair dou um jeito: fico espiando a rua, esperando uma hora que não tenha ninguém e saio. Ou subo no teiado e vou andando por cima das casa até chegar no beco do Faria, onde num passa ninguém. Aí eu pulo e fico na rua até ter vontade de voltar.
            A essa altura da conversa, a madrugada já se fora, e o sol, com sua trombeta vermelha, se anunciava a alguns madrugadores da cidade. Quando passavam em frente à casa proibida e viram a porta aberta, com a figura imponente do fazendeiro obstruindo a soleira, esqueceram a maldição da doença de nome impronunciável e se acercaram.
            Pronto. Desfizera-se o mistério e quebrara-se o tabu daquela casa. Não havia demônio, nem fantasmas. Nada de sobrenatural pairava sobre aquela construção. Fora preciso a audácia de um maluquete para acabar com os mistérios pretensamente impregnados dos miasmas da tísica e com os preconceitos e as superstições daquele povinho ignorante — pensou o fazendeiro, que nunca dera trela aos boatos.
            Desvendados os mistérios, a casa deixou de ser fetiche e os herdeiros começaram a receber propostas de compra. Um ano depois, ela foi restaurada e vendida a bom preço a uns recém-casados que nela viveram sem os fantasmas imaginários e sem o medo dos miasmas da doença que, durante muitas décadas, afugentaram os habitantes da cidadezinha.


Uma rasteira na morte

(Vicência Jaguaribe)



As fiandeiras do destino rondavam a casa desde que a menina viera ao mundo antes da hora marcada: nascera de sete meses e cabia em uma caixa de sapatos. As três meras acharam que não valia a pena começar a tecer o fio da vida daquela garotinha, que seria cortado em poucas horas. Enganaram-se as três irmãs. Em alguns meses, via-se naquela casa uma forte e saudável garota, com águas-marinhas nos olhos e caracóis de ouro na cabeça. As meras, então, tiveram que retroceder e determinar o destino da menina. Quando ela completou sete anos, Láquesis afiou a tesoura. Chegara a hora. A poliomielite pegara-a de jeito, mas ela sobreviveu sem sequelas. E a mera guardou a tesoura ritualística.


            Trinta anos mais tarde, Átropo, Cloto e Láquesis foram repreendidas por Zeus.  Que incompetência em regular a duração da vida dessa mortal! Voltaram a rondar a casa. Um câncer de mama agressivo fez Léquises preparar novamente a tesoura, que mais uma vez não teve serventia. Quinze anos se passaram depois da recuperação. O câncer voltou, espalhando-se pelo corpo. E novamente as meras ficaram de prontidão. No mundo dos homens, o prognóstico era de morte certa em poucos meses. No mundo dos deuses, para as três irmãs, a oportunidade de se redimirem. Mas a ex-menina, agora mãe e avó, não se entregou. Prosseguiu na batalha.  Já se contam cinco anos de luta, e Láquesis não conseguiu cortar o fio que Átropo fia e Cloto enrola. Zeus continua furioso. As fiandeiras do destino estavam sendo lesadas por uma mortal insignificante — vergonha que nunca, antes, caíra sobre o Olimpo.


Os sonhos do menino


(Vicência Jaguaribe)



            Aquela quadra da rua dividia-se de maneira bastante curiosa. Se tivermos em mente o sentido praia-sertão, do lado direito ficavam as casinhas simples ocupadas em sua maioria pelas famílias dos funcionários da fábrica de óleo. Do lado esquerdo, os pequenos, mas confortáveis bangalôs, habitados por membros da família dos donos da fábrica.
As do lado direito eram casas de porta e janela, com uma sala de entrada, um quarto com uma janelinha baixa que dava para uma área interna, um minúsculo corredor que desembocava em uma sala, à qual se seguiam mais três compartimentos – eram outras salas ou quartos? Sem dúvida, multifuncionais, serviam durante o dia como salas e, à noite, como quartos. Depois, vinha a cozinha e uma minidespensa, que, se necessário, serviria de dormitório. O banheiro ficava fora da casa, mas não no quintal, que, para aquele tipo de habitação, quintal era luxo. Ficava em um pequeno espaço descoberto, que funcionava como área de serviço, ou melhor, como local de lavar roupa.
Os pequenos bangalôs, pintados todos de branco, tinham um reduzido jardim, que recuava um pouco a porta de entrada, ao lado da qual ficava a garagem, que os mais abastados já possuíam carro. Aquelas residências não tinham nada que fizesse lembrar o sentido original do vocábulo bangalô, ou o sentido primeiro que ele adquirira ao ser importado no Brasil. Na Índia, a palavra nomeava uma casa, geralmente de madeira, circundada de varandas. No Brasil, primeiro, deu nome a casas de campo ou a casas urbanas similares na arquitetura ao bangalô indiano. Depois, por extensão de sentido, passou a designar qualquer casa de bom aspecto, assim considerada por quem a julgasse. Alguns poucos daqueles bangalôs eram assobradados.
De maneira geral, a separação entre as famílias que moravam à direita e as que moravam à esquerda não era muito acentuada. As crianças de um lado brincavam com as crianças do outro lado. Mas a diferença se expressava nas roupas, na comida e no colégio em que estudavam. E, principalmente, nos presentes que recebiam de Natal.
Em um desses pequenos bangalôs, morava um médico, que mantinha relações de amizade com os que habitavam a casinha de porta e janela, em frente ao seu bangalô. A dona da casa era do interior e, de vez em quando, recebia familiares, criança e adultos. Daquela vez, viera sua irmã, o marido e os três filhos do casal – duas meninas e um menino.
O menino, o mais novo dos três, admirava-se de tudo. Por isso abriu desmesuradamente os olhos, quando viu uma bicicleta infantil dirigida por um menino que habitava o lado esquerdo da rua; abriu a boca, quando viu uma menina, também moradora do outro lado da rua, andando de patins na calçada; e soltou um oh!, quando viu o portão do bangalô de frente se abrir, um carro branco entrar e sumir-se na semiescuridão da garagem. Naquela noite, o menino sonhou que a tia mudara de lado – isto é, passara a morar em um dos bangalôs da esquerda – tinha um carro e dera-lhe de presente uma bicicleta e uns patins.
Acordou muito cedo e, com cuidado para não incomodar os primos que dormiam na sala da frente, abriu a porta, fechou-a e sentou-se no batente. Queria ver quando o doutor saísse. Queria sentir o prazer de apreciar aquela beleza de carro. Será que, um dia, o pai teria um – igual, não, era impossível – parecido? Ele se imaginava sentado ao lado do pai, passeando pelas ruas de sua cidadezinha. Primeiro, iam só os dois, ele e o pai. Depois, chamaria os amigos, e o pai percorreria toda a cidade com o carro cheio de criança. As irmãs não iam não, que carro é coisa pra homem.
Voltou à realidade, ao ouvir o barulho do portão abrindo. O doutor tirou o carro da garagem, deixou-o ligado e saiu do veículo para fechar o portão. O menino, num impulso incontrolável, correu de seu posto de observação e pendurou-se na traseira do carro. O motorista dirigiu uns dez metros. Não mais que isso. E o menino caiu. Mas um pedaço da blusa do pijama ficou preso no carro, de modo que ele foi arrastado pelo calçamento, até que algumas pessoas que passavam pelas imediações gritaram. O médico parou o carro e, assustadíssimo, apanhou o menino, que ganhara algumas escoriações. E chorava. Talvez mais por medo do que pelos ferimentos.
O doutor reconheceu-o, mas levou-o para a sua própria casa. Examinou-o. Nada de grave. Desinfetou os arranhões e mandou a mulher chamar a tia do menino. Alguns carões, algumas brincadeiras, e estava pronto para outra.
Durante os dias seguintes, ele foi vigiado, para que não aprontasse outra daquelas. Nem precisava, porque o menino desviara os olhos e os sonhos para outros focos. Por exemplo, para o Circo Garcia, que se apresentava em Fortaleza e do qual assistira a uma função. Iria fugir com aquela trupe itinerante. Ora, se iria!                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         







Com discrição


(Vicência Jaguaribe)



            Três dias sem dormir direito. O que o primo lhe contara não fazia sentido. Não, ele não era nenhum puritano nem sofria da síndrome do complexo de Édipo. Aquela fase de sua vida fora muito bem resolvida. Ele se dava bem com o pai, e o divórcio não interferira na relação dos dois.
Quando os pais se separaram, sua mãe, uma mulher jovem e bonita, dedicou-se totalmente à família e aos estudos. Poderia ter arranjado um novo amor e até se casado. Não faltara incentivo dos filhos, principalmente dele próprio. Muito menos pretendentes. Assim como o pai refizera sua vida amorosa, ela também poderia refazer a sua. Mas, à insistência deles, ela sempre respondia com uma destas máximas:
            — Gato escaldado tem medo de água fria.
            — Quem de uma escapa, cem anos vive.
            Criara os quatro filhos conservando certa distância do marido, mas sem dificultar a relação deles com pai. Também nunca se soube o real motivo do fim daquele casamento. A quem perguntava ela saía-se com a clássica e evasiva resposta:
            — Incompatibilidade de gênios.
            Depois da separação voltou a estudar, formou-se em Direito e conseguiu ascender no emprego. Às vezes saía com os amigos — iam a um cinema, ao teatro, a um barzinho, ao show de um cantor preferido, mas, quando se insinuava uma relação mais séria, ela despistava. E assim o tempo foi passando, e ela perdendo não a beleza, mas o viço da juventude. Agora vinha o primo com aquela história. Ele reagira como um adolescente. O primo assustou-se e disse que até se arrependia de ter-lhe contado. Ainda não dissera nada aos irmãos, queria primeiro ter certeza de que era verdade aquela história absurda.
            — Cara, eu vi tua mãe com um namorado.
            — Quê! Minha mãe? Você está louco!
            — Juro, rapaz, ela não me viu, que eu estava do outro lado da calçada. Saiu da repartição no fim da tarde e caminhou uns dez metros em direção a um carro escuro parado. Entrou, abraçou e beijou o motorista. E não foi um beijinho de amigo, não. Foi um beijo na boca. Depois, o motorista levou o carro para um lugar mais sossegado, perto de uma pracinha, e os dois ficaram lá, no maior amasso.
            — Como você sabe? Ficou vigiando?
            — Não. Mas, quando reconheci a tua mãe, fiquei curioso e disfarçadamente passei por eles, que continuavam dentro do carro.
            — E ela te viu?
            — Não, que estava muito ocupada.
            — Cara, respeita a minha mãe, se não eu te ferro.
            — Calma, eu não quis ofender, não, afinal, ela é minha tia. Mas tua mãe ainda é um mulheraço e...
            O outro apertou o colarinho do falador, como se quisesse asfixiá-lo.
            — Se era quase noite, como é que você tem certeza de que era ela?
            — As luzes da rua já estavam acesas. Ela parou perto de um poste, e a claridade caiu-lhe sobre o rosto. E tem mais, cara, não foi só uma vez que presenciei esse encontro, não. Pelo menos uns três dias na semana ele está lá, esperando por ela.
            — E ele, tu conheces?
            — Não dá pra ver, não, ele fica protegido pela sombra do interior do carro.
            Deixou o outro falando sozinho e foi para casa. Não diria nada a ninguém, até que ele mesmo visse a cena absurda que o primo lhe descrevera. A mulher perguntou o que ele tinha, se estava doente. Ele inventou um cansaço que provocara dor de cabeça. Mas aquela história mexera com ele. Logo que os pais se separaram, ele achava que a mãe devia achar alguém. Mas depois acostumara-se a vê-la com a atenção voltada somente para os filhos. E, de certo modo, todo o tempo que a mãe passara sozinha acabara por lhe oferecer dela a imagem de uma mulher casta. E ele alimentara a ideia de uma mãe imaculada, talvez até uma outra Virgem Maria. Como os mitos agem sobre nós! — pensou. Manipulam-nos. Moldam-nos e impõem-nos um padrão de comportamento.
            No outro dia, no finalzinho da tarde, estava a postos no lugar que o primo lhe indicara, quando o carro escuro parou ao lado da pracinha. Ele deslocou-se devagar e viu quando o motorista baixou o vidro. Aproximou-se pelo lado do passageiro e inclinou-se para dentro do veículo.
            — Mamãe! Que é que a senhora está fazendo aqui? Quem é este homem que...
            Antes que um dos dois tivesse tempo de falar, ele reconheceu o motorista:
            — Papai!
            — André! — Gritaram os dois ao mesmo tempo, como se estivessem vendo um extraterrestre.
— Mas por que é que vocês estão agindo assim, escondidos, como um casal de adolescentes com medo da reação dos pais? Por que não se encontram lá em casa ou na casa do senhor, papai? Por que não voltam a morar juntos?
— Estamos muito bem assim. Nada de morar juntos de novo. Não se meta. Somos nós que resolvemos nossas vidas. E dê licença, estamos indo. — Ouviu estupefato a reação, que tanto poderia ser da mãe como do pai. Ou, provavelmente, dos dois.
E o carro arrancou cantando pneu.
O certo é que aquela relação supostamente clandestina durou mais do que o tempo que aqueles dois ficaram casados oficialmente. E nela os dois foram muito mais felizes.




A extraordinária história de seu João da Serra


(Vicência Jaguaribe)

E que é que se vê nesta ilha, que no
mundo não tem comparação?

(João Ubaldo Ribeiro. Miséria e
Grandeza do amor de Benedita.)


               Seu João da Serra era o homem mais arranjado da região. Casado com dona Maria do Carmo, mulher virtuosa e cabocla famosa, tinha cinco filhos entre dois e dez anos. Seus negócios se diversificavam: mexia com gado, com plantação e com o comércio. Ultimamente, vinha de olho na serra que separava suas terras do mundo exterior. Não falara a ninguém, mas para ele aquelas pedras guardavam algo de precioso. Havia uma pequena caverna, cuja entrada só ele conhecia, com pequenos pontos brilhosos nas paredes, que faiscavam, quando sobre eles incidia luminosidade. Qualquer dia, mas sem pressa ou aperreação, iria à cidade falar com o Prefeito, seu amigo e compadre. Nele podia confiar. Mas era assunto que carecia esperar. Não tinha pressa.
            O homem era sério, de cara fechada e só abria o sorriso para os filhos pequenos e para notícia de bom lucro. Respeitador e direito nos negócios, controlava seus bens e não andava gastando dinheiro à toa: não bebia nem jogava. Mas tinha uma paixão – a política – e com ela gastava alguns e, às vezes, até muitos trocados. Não que ele próprio pleiteasse cargo eletivo. Nâo! Seguia a orientação de seu compadre e apoiava o candidato que ele mandasse apoiar. E nunca se arrependera.
Apesar de cuidadoso com dinheiro, seu João vivia com conforto – conforto, não luxo: morava em uma boa casa; tinha algumas modernidades para facilitar o serviço doméstico; água encanada; um bom rádio; um gerador de energia elétrica e dois carros (um caminhão e uma camionete).
Apreciava também um bom forró, a que ia três vezes por semana. Mas dançava com todo o respeito: nada de piadinhas ou conquistas. A mulher não gostava de sair de casa, e ele ia sozinho. Se ela gostasse, poderia levá-la de vez em quando, não via nada de mais.
Mas, nesta vida, nada é para sempre, nada é estático. O movimento e a mutação são princípios básicos do mundo, por isso costuma-se dizer que até araruta tem seu dia de mingau. Pois bem, chegara o dia de seu João da Serra. No forró do Zé da Maria Paula, ele conheceu a Benedita, menina branca e novinha, que se divertia ali, vigiada pelo olhar dos pais, que filha mulher é tesouro fino. Seu João pediu o obséquio de uma dança, e a menina olhou para os pais, que assentiram com a cabeça. Quando a teve nos braços, o homem sentiu que estava a um passo do céu. Nunca experimentara algo assim!
No intervalo entre as danças, puxou conversa com uns conhecidos para saber da menina e dos seus pais. Eles não eram daquelas terras, tinham acabado de chegar à procura de trabalho, e a menina era a única filha deles. Seu João não perdeu tempo: aproximou-se do imigrante – era Zelito o seu nome, Maria das Dores, o da mulher, e Benedita, o da filha – e puxou conversa. No fim do forró, o casal tinha trabalho certo e casa onde morar.
Seu João da Serra passou a sair toda noite, e não escondia da mulher que ia à casa do Zelito. Durante a tarde, enquanto os pais trabalhavam, ele visitava a filha, a Benedita, que aos poucos foi gostando daquele homem calmo, que a tratava com carinho.
Um dia, o Zelito e a Maria das Dores voltaram mais cedo para casa e viram o homem fechando a porta da rua, ainda abotoando o cinturão. Meio envergonhado, torcendo o chapéu com as duas mãos, Zelito mandou a mulher entrar e disse ao patrão que precisava falar-lhe. Sentados no banco rústico, feito do tronco de uma carnaubeira, os dois homens conversaram.
O Zelito não via problema no fato de a filha se deitar com seu João. Filha é feita para os outros. Bem que a mulher, quando vira o interesse do patrão, chamara a atenção do marido e até dissera que não era bom levar uma raposa a um galinheiro. Nada de grave! Só não queria que a filha caísse na boca do povo e depois fosse abandonada. Pedia ao patrão que montasse casa para a Benedita, tratasse-a como esposa e reconhecesse os filhos que Deus mandasse. Seu João prometeu e comprometeu-se a cumprir a promessa. E, como todos sabiam, palavra de seu João da Serra tinha força de lei!
Saiu dali e foi direto conversar com a mulher. Tinha certeza de que ela compreenderia e aceitaria o arranjo: trazer a menina para morar com eles. Ela até poderia ajudar nos serviços da casa e nos cuidados com os meninos. Era melhor do que enfrentar os gastos de uma casa montada só para ela. Segredou no ouvido da mulher que aquela menina não iria ocupar o seu lugar no coração dele, e que as obrigações de marido com ela seriam as mesmas. Sem perguntas e sem cara feia, dona Maria do Carmo concordou com o arranjo e só acrescentou um adendo: Se ela for uma menina boa, obediente e educada, vai ser tratada como uma filha; se não, rua.
No outro dia bem cedo, seu João foi buscar a menina e instalou-a em um quarto pequeno, mas não desconfortável, que ficava do lado oposto ao lado em que estava o de dona Maria do Carmo. A mulher simpatizou logo com a Benedita, que pela idade e pelo jeito inocente confundia-se com suas filhas mais velhas. E a convivência prometia ser pacífica. Benedita obedecia à dona Maria do Carmo como à sua mãe, brincava com as crianças como se fosse uma delas, e o casal de imigrantes, seus pais, eram recebidos com atenção e afeto.
O arranjo satisfez a todos, e não se ouviu recriminação à atitude de seu João, nem naquele pequeno povoado ao pé da serra – onde o que seu João decidia estava decidido –, nem na sede do município, onde ele era conhecido e respeitado. Alguns amigos até viam aquela situação inusitada com muita graça, como um fato que acabaria assumindo um caráter folclórico, de modo que, dentro de alguns anos, seria contado como um causo. Porque há causos e casos!
Seu João tinha um comportamento exemplar: não acarinhava uma na frente da outra. Começava a dormir com dona Maria do Carmo, no meio da noite ficava com a Benedita e amanhecia com a esposa. Nunca deixou ninguém presenciar esse vai-e-vem, também nunca alterou a ordem das entradas e saídas dos dois quartos, porque, nesse caso específico, a ordem dos fatores alteraria profundamente o produto, e ele queria viver em paz.
Nove meses depois da mudança, Benedita teve o primeiro filho – uma menina clarinha, muito parecida com a filha mais velha de dona Maria do Carmo. A primeira esposa assistiu a segunda na hora do parto e, desde o primeiro dia, amou aquela galeguinha como se fora sua.
Benedita retribuiu a atenção da primeira esposa quando esta pariu o sexto, o sétimo e o oitavo filhos, que vieram intercalando com os seus próprios.
Seu João abandonou o gosto pelos forrós. À noite, no alpendre, podia-se ver à luz da lua, obscurecida pela luz elétrica, a grande família, na qual uns cuidavam dos outros, e todos dispensavam atenções a seu João da Serra, que contava histórias fantásticas, sem atentar para o fato de que a história mais extraordinária que já correra por aqueles lados era a sua própria história.

Escrito depois de narrado o caso.
Antes que o tempo obscureça a origem desta história e apague o rastro de seus protagonistas; antes que ela seja engolida pelo devorador anonimato do folclore, esta contadora de histórias garante-lhes que ela é verídica. Fizeram-se algumas alterações, para que o leitor tivesse maior prazer ao lê-la, e mudaram-se os nomes das personagens, por exemplo, mas o cerne da narrativa assenta-se em um fato real.









A matrioska



(Vicência Jaguaribe)


Para a Andrea,
a menina que não conseguiu
ficar com a sua matrioska.



          Era a primeira vez que ia ao apartamento da amiga. Uma amiga recente, com quem se afinara. Tinham gostos muito parecidos. Ela lhe mostrava os cômodos, cuja decoração misturava o antigo com o moderno, mistura de que ela também gostava.
          Pararam em frente a um pequeno armário de parede, afixado no espaço que ficava entre dois dos três quartos. A amiga abriu as duas portas do pequeno móvel suspenso, no interior do qual, envolvida pela quase penumbra do ambiente, ela identificou uma forma inconfundível.
          - Que bonequinha é aquela, lá no fundo? – a pergunta sendo mais uma confirmação do que propriamente uma tentativa de identificar.
          - Ah! É uma matriosca. Linda, não?
          Ela não ouviu a resposta da amiga. Ouviu a voz da avó, que vinha do passado, de um passado tão distante, meu Deus!, que ela não pensava que ainda se lembrasse daquele episódio, muito menos daquela conversa.
          A avó abrira a cristaleira e tirara lá do fundo uma bonequinha feita de madeira e pintada de cores vivas. Sentou na cadeira de balanço e pôs a neta no colo. Ela tinha o quê? Quatro, cinco anos... talvez seis. Entregou-lhe a boneca:
          - Abra! Ela é oca. Veja o que há dentro dela.


          Com muito cuidado, a menina abriu a boneca – separada que era em duas partes por um corte horizontal na altura da região dos quadris – e viu, surpresa, que dentro dela havia outra boneca menor. A avó, então, mandou que ela continuasse abrindo as bonecas menores. A menina foi abrindo, abrindo, abrindo... A cada nova boneca seus olhos demonstravam mais surpresa e encantamento. A operação continuou até chegar a uma minúscula boneca compacta. Junto com a avó ela contou: uma, duas, três... sete bonecas! E elas se encaixavam umas dentro das outras de maneira tão perfeita que quem via a maior não suspeitava que dentro dela havia outras seis bonecas. Era como se fosse um mundo dentro do outro, mas cada um existindo por si próprio, independente, sem misturar-se.
          - Sei que você gosta muito desta boneca. E um dia ela será sua, mas não pode ser agora. Vai ser a sua herança. O nome dela é matrioska, palavra russa que significa mãezinha. Algumas pessoas acham que ela representa a família, sempre protegida pela mãe. Contam que essas bonecas se originaram no Japão. Dizem que um pintor artesanal chamado Sergei Maliuntin viu no Japão uma peça representando os Shichi-fuku-jin, os sete deuses da fortuna, que se encaixavam uns nos outros como as bonecas feitas hoje. Ele, então, pensou em aproveitar a ideia dos japoneses, só que fazendo bonecas representando pessoas. Fez a primeira e pintou-a como uma camponesa russa. E nasceu a matrioska.


           A menina ficou toda animada. Em suas visitas à casa da avó, passava pela sala da cristaleira e demorava longos minutos olhando a sua boneca. A boneca que era sua, mas com a qual não podia brincar.
          Nos fins de semana, nas férias, a menina ia à casa da avó. Uma grande casa assobradada, no Benfica, com muitas e frondosas árvores, principalmente mangueiras, nas quais ela, seus irmãos e primos gostavam de brincar. Escanchavam nos galhos mais altos e faziam de conta que estavam num campo de batalha, montados em belos cavalos árabes.
          Um dia, ela teve coragem e perguntou:
          - Mãe, o que é uma herança?
          - Uma herança é dinheiro ou bens que a gente recebe quando morre um parente rico.
          A menina ficou de cara amarrada o resto do dia. Então, a vovó ia morrer? Ela dissera que a boneca russa ia ser a sua herança. Eu não quero que a vovó morra. Mas também quero a bonequinha, ela pensava. Era um grande conflito atormentando a cabecinha da menina. E ele só tinha seis anos.
          Um ano depois, a avó morreu. Enquanto a família toda chorava, a menina sentia o coração bater em um compasso diferente. E não era propriamente vontade de chorar o que ela experimentava. Mas precisava parecer triste. Ninguém podia desconfiar que ela, apesar de sentir a morte da avó, estava feliz porque ia ganhar a matrioska. Três dias após o enterro, o pai chamou-a para ir com ele à casa do Benfica. A menina não coube em si de contente. Pronto, chegara o dia de receber a desejada herança. Era só abrir a cristaleira e de dentro dela tirar aquele mimo que tanto a fascinava.
          Parou em frente ao móvel, mas antes de abri-lo olhou para a sua boneca. Quase desmaia. A matrioska não estava mais em seu lugar. E as lágrimas começaram a escorrer. E os soluços se fizeram ouvir por toda a sala. Os adultos a cercaram e tentaram consolá-la pela morte da avó. E quanto mais a família tentava consolá-la, dizendo que a vovó estava no céu, mais ela chorava. Chorava e sentia remorso: ela não chorava pela avó, chorava pela matrioska, que não mais seria sua. Alguém se antecipara e achara-se no direito de ficar com a sua boneca. E todas as vezes em que a família se reunia no casarão do Benfica ela chorava. Chorava pela boneca, mas todos pensavam que era pela avó. E ela sentia vergonha e remorso daquelas lágrimas.
          - Uma matrioska! Foi sempre meu sonho possuir uma dessas bonecas. – Só agora ela respondia à observação da amiga.
          A amiga impressionou-se com o tom de sua voz e com o ar triste e desconsolado que lhe cobria o rosto. Tirou a matrioska do armário e a pôs em suas mãos.
           - Pronto. A boneca é sua.
          Ela não pôde de imediato agradecer à amiga, porque estava novamente sentada no colo da avó, que lhe contava a história da matrioska e lhe dizia o que ela sempre quisera ouvir:
          - Sei que você gosta muito desta boneca. E um dia ela será sua, mas não pode ser agora. Vai ser a sua herança. O nome dela é matrioska, palavra russa que significa mãezinha...








Por uma colcha de cama...





(Vicência Jaguaribe)





          A raiva minava-lhe por todos os poros. Era uma raiva pegajosa, que lhe ensopava a roupa, pingava no chão e espalhava-se por toda a casa. Sempre fora irascível, mas piorara depois que aquela vadia fora morar na casa em frente. Era bonita a diaba – um morenaço de dar água na boca –, mas não lhe dava confiança. Morava só com os três filhos. Depois da separação, o marido fora para o sul e nunca mais voltara. De vez em quando, mandava algum dinheiro para os filhos. Dinheiro, limpo e seco, depositado na conta bancária da mulher. Nem uma palavra, nem um telefonema.
          Ela se fazia de séria, de direita, mas não o enganava não. Qualquer dia desses, ele tinha certeza, ela apareceria com um homem. Aí queria ver como ficaria seu nome na boca daquela gentalha, que só tinha olhos para a vida dos outros. Ele falava sem medo de ser castigado. A sua era uma mulher de vergonha. Nela ele podia confiar. Séria, mal saía. Era da casa para a igreja, da igreja para a casa. Feia, mas direita.
          Quando pensava na mulher e comparava-a com a vizinha, um diabinho espevitado pulava no seu ombro e soprava-lhe no ouvido: Também, feia daquele jeito, qual é o homem que vai querê-la? Pode dormir em paz que a galharia jamais enfeitará a sua cabeça. Ao ouvir essa galhofa, ficava com mais raiva ainda e vingava-se nas coisas de dentro de casa: esmurrava a mesa, chutava as cadeiras, quebrava a louça.
          Ultimamente, a mulher vinha implicando com a vizinha. Todo dia tinha uma história para contar. Ela passara o dia na rua e deixara os filhos sozinhos. Parecia ter desenterrado uma botija – era tanta roupa nova, tanto sapato caro! Até uma geladeira e um fogão novos havia comprado. Sempre que a mulher lhe contava essas coisas, o mau-humor dele aumentava. O que é que você tem a ver com isso? Deixe a mulher viver em paz. Mas no fundo tinha vontade de entrar na casa dela e ver se aqueles boatos tinham fundamento. Se tudo fosse verdade, ela tinha um amante, e um amante rico.     
          A mulher queixava-se também de que a vizinha falava mal dela, ria quando ela passava, proibia os filhos de brincar com as crianças deles, como se seus filhos fossem melhores do que os deles. Quando passava, mal a cumprimentava, mas ficava olhando para dentro de casa como se quisesse descobrir algum segredo. Segredo! Eles não tinham segredo. A vida deles era um livro aberto.
          Naquele dia, um sábado à tarde, o marido havia bebido com os amigos. Não quisera comer nada, só queria deitar-se. Enquanto armava a rede, ela foi dizendo que desaparecera a colcha de cama nova que a madrinha dela lhe dera no Natal e que mal usara. E tinha certeza de que fora a vizinha. Mas como, se ela nem andava ali? Aí é que ele se enganava. Nos últimos tempos, ela tinha dado para aparecer de repente. Encontrava a porta aberta e ia entrando. Vira a colcha e achara-a muito bonita. Até perguntara onde ela havia comprado. Ela vira se a colcha estava na casa da vizinha? Ela não vira não, mas mandara um dos meninos lá, com a desculpa de chamar uma das crianças dela para brincar, e ele vira. A colcha estava lá, bonitinha, estiradinha na cama. E a dela desaparecera. Ela já havia procurado no baú, no guarda-roupa, e nada.
          Cambaleando e sem saber muito bem o que estava fazendo, ele passou pela cozinha, pegou a faca grande de cortar carne e atravessou a rua. A porta da casa da vizinha estava encostada. Ele empurrou-a e entrou. Passou primeiro pelo quarto e constatou que a colcha estava na cama. Na porta da cozinha, parou. Ela lavava a louça. Trazia o cabelo preso e vestia um vestidinho de casa fino e curto. Nunca a vira tão bonita. Pigarreou para avisar que estava ali. Ela virou-se em direção à porta e deixou escapar um grito assustado. Você roubou a colcha de cama lá de casa, não foi, sua vadia? A mulher não entendeu logo o que estava acontecendo, mas, quando ele repetiu a acusação, ela tentou explicar. A colcha não era a da sua casa. Achara a da patroa dele muito bonita e comprara uma igual. A patroa até lhe dissera em que loja a madrinha havia comprado, e ela fora até lá. Por sorte encontrara uma da mesma cor, com os mesmos bordados. Igualzinha. O homem não quis ouvir nenhuma explicação. Nem precisava. Não havia necessidade. Avançou e retalhou o corpo dela com a faca que a mulher usava para cortar carne. Deixou a faca no chão, ao lado do corpo, lavou as mãos e correu para casa. A mulher entendeu o que acontecera assim que pôs os olhos nele.
          Ele não parou para conversar. Enquanto trocava a roupa suja de sangue, contou-lhe tudo. Pegou a chave da moto e desapareceu. Quando a polícia chegou, a mulher disse o motivo do crime. Estava calma como se não fosse personagem daquela tragédia. Nem tentou disfarçar a tranquilidade. Não, não sabia para onde o marido fora. Não tinha a mínima idéia. Ele não costumava dar-lhe satisfação. Quando levaram o corpo para o IML, e a rua retomou um pouco da calma das tardes de sábado, ela deixou os filhos assistindo televisão, entrou no quarto e trancou a porta. Abriu o baú trancado a chave e de dentro dele tirou o motivo do crime. Estirou-a na cama, pegou a tesoura e cortou-a em pedaços pequenos. Aos poucos, iria dando sumiço neles.







A chegada do irmão do Mateus


(Vicência Jaguaribe)



           O irmão ia chegar. Ele só não sabia quando nem como. Também não tinha certeza sobre se era mesmo um irmão, ou se era uma irmã. Só sabia que todo mundo não falava em outra coisa. Até o avô e a avó sairiam da casa deles, lá em Fortaleza, para assistir a essa chegada.
          Há algum tempo – um tempo que ele não sabia precisar –, a mãe andava diferente. Havia engordado, e a barriga parecia uma bola gigante. Um dia, ela o mandara pôr a mão no barrigão dela, e ele sentiu um impulso, como se fosse um chute. Assustou-se, retirou a mão bem depressa e ficou olhando    interrogativamente para a mãe, como a perguntar o que tinha sido aquele sopapo. Ela disse que era o irmãozinho mexendo-se na barriga dela. Ah! então, ele estava dentro da barriga dela! Quis perguntar como era que o irmão havia ido parar ali, mas preferiu não puxar conversa. Estava realmente assustado.
          E o Mateus – era esse o nome do menino – ficou acompanhando, durante meses, os preparativos para a chegada do irmão, ou da irmã, pensava ele. E já estava ficando chateado. Os pais iam ao supermercado e chegavam com o carro cheio de coisas para o bebê. E os avós mandavam do Ceará roupinhas, sapatinhos, e outras peças que ele não sabia mesmo para que serviam. Desocuparam o gabinete do pai dele para preparar o quarto do irmão – ou irmã? –, e mandaram fazer uma pintura nova, desenhar uns bichinhos, forrar o assoalho. Depois, compraram uma cama bem pequenininha – um berço, lhe disseram –, uma cômoda, um guarda-roupa e uma cortina nova. Ele só sabia que o quarto havia ficado muito bonito, mas não o deixavam brincar lá dentro dele. Já levara muito carão da mãe, porque de vez em quando ela o pegava entrando lá.
          Às vezes, a mamãe perguntava se ele preferia um menino. Ou uma menina? Ele ainda não se decidira. O pai dizia que, se fosse menino, os dois iam poder brincar juntos. Mas ele não entendia como era que poderia brincar com um irmão que ia caber dentro de uma caminha bem pequenininha, que os pais chamavam moisés. Ainda mais que ele só gostava de brincar com menino maior do que ele. A mãe dizia que, se fosse uma menina, ele ia cuidar dela, ia protegê-la, porque menina precisa de proteção. Não sabia não, mas achava que a mãe não entendia nada de meninas. Lá na escola dele, havia umas meninas que até batiam nos meninos! Eram danadas, decididas, desaforadas, briguentas. Verdade que algumas eram medrosas e choronas. Uns colegas dele tinham irmãs e não gostavam nem um pouco.
          Ainda bem, pensava de vez em quando, que os pais não pediram o quarto dele para o neném, escolheram o gabinete do pai. Também, se tivessem pedido, ele não teria dado não. Era só o que faltava! Bastava aquele monte de presentes comprados para ele. Ou para ela? E o Mateus só ficava olhando, com uma cara meio esquisita.
          Perto do dia da chegada do irmão foi o aniversário do Mateus. E ele, que havia pedido um aniversário bem grandão em um bufê, teve que se contentar com uma festinha mixuruca no colégio mesmo. Mas pelo menos o presente foi o que ele tinha pedido mesmo: um aparelhinho de jogo eletrônico. Ainda bem!
          A mamãe estava tão gorda, que o Mateus não sabia como era que ela conseguia andar. Passava a maior parte do tempo sentada em uma cadeira de balanço, abanando-se. E ficava o tempo todo pedindo as coisas ao menino: Mateus, me dá um copo d’água! Mateus, traz a minha chinela! Mateus, estão batendo na porta! Ele ficava cansado de tanto que ela o chamava. Graças a Deus que o vô Zé Maria e a vó Raymundinha iam chegar. Queria só ver se eles não iam trazer um presente para ele!
          - Mateus, estão batendo na porta.
          Desta vez o menino não demorou, porque achava que eram os avós que haviam chegado. Abriu a porta de uma vez e atirou-se nos braços do avô. Depois, deu um abraço na avó. Gostava daqueles avós. Eram os pais do pai dele. Do avô, então, gostava demais. Ele brincava, contava umas histórias engraçadas, inventava umas mágicas, uns mistérios... e o melhor... nunca brigava com ele. Fazia tudo que ele queria. Da avó Raymundinha ele gostava, mas ela não era muito paciente com crianças não.
          Levaram as malas para o quarto, e a avó tirou de dentro de uma sacola uma caixa grande. Era o presente do Mateus! Vocês se lembraram! – Gritou o menino, rasgando o papel do presente. Era um jogo que ele estava querendo há muito tempo. Ouviu quando a avó disse para a mãe dele que aqueles outros presentes eram para o bebê. Olhou com o rabo do olho e viu que eram muitos pacotes, mas todos muito pequenos. Não havia nenhum grande como o dele. Conformou-se.
           Dois dias após a chegada dos avós, os pais saíram com a vó Raymundinha, bem cedinho. Iam buscar o irmão do Mateus. Ou irmã? Ninguém sabia ainda. E ele ia ficar com o avô no apartamento. Dessa parte gostou muito. Achava uma beleza ficar só com o avô. Ele brincava como se fosse uma criança.
          Antes do meio-dia, o pai telefonou, dizendo que o neném chegara e era... Adivinhe, Mateus! – Disse o avô. Um menino! – Gritou o neto. E o Mateus ficou aperreando um bom pedaço. Queria porque queria ir ver o irmão e a mãe. Mas teve de conformar-se e esperar até a manhã do dia seguinte.
           O menino fez uma festa, quando a mãe chegou. Queria pegar o irmão no braço. Depois, queria que a mãe o pusesse no colo. Quis botar a chupeta do bebê na boca. Começou a chorar, porque a mãe disse que não podia botá-lo no braço. O pai, então, o pegou, escanchou-o no pescoço e aproximou-o do irmão, que já cochilava nos braços do avô. Num descuido do pai, o Mateus inclinou-se e fez um carinho no irmão: passou a mão na cabecinha dele, talvez com alguma força, pois o bebê abriu o berreiro. O menino assustou-se e pediu ao neném que não chorasse. Ele não passava mais a mão na sua cabecinha, não.
          Os primeiros dias deixaram o Mateus na corda bamba. Derretia-se todinho para o irmão, mas, quando o via sendo amamentado, fazia bico e encostava-se na mãe, como se quisesse ocupar-lhe o colo. Ora brincava calmamente, mostrava-se dócil, carinhoso, ora transformava-se em um porco espinho. Com o passar dos dias, a rotina começou a arrumar a vida, mas as crises de ciúme do Mateus, embora menos amiudadas, não desapareceram. E os cuidados tiveram que ser redobrados. E a atenção teve que ser intensificada.
           Até que um belo dia, já às vésperas do retorno dos avós a Fortaleza, ele chegou para a avó Raymundinha, que estava com o bebê no colo, fazendo falinha, e disse bem explicado e com a cara mais séria do mundo.
            - Se vocês ficarem dando atenção somente a ele, eu vou fugir de casa. E vocês nunca mais vão me ver.




A linha de chegada


(Vicência Jaguaribe)



          Chegara saudável e robusta. Assim que a idade permitiu, demonstrou alegria e entusiasmo pela vida. Era um pássaro que chilreava, dando um basta à tristeza. Sua garganta de uirapuru não esperava ocasião para soltar os sons harmoniosos que a faziam ser sempre requisitada nas festas infantis. E, mais tarde, nas rodas dos jovens amigos e nas mesas de bar, que não dispensava uma cervejinha.
          Mas ela perdeu cedo a aposta que todos fazemos com Láquesis, a terceira das três Meras, as fiandeiras do destino. No ponto de partida, a situação até se equilibrava. Ela nascera em uma família de classe média e fora a primeira filha do casal. Criada com carinho e atenção, recebeu mais do que muita criança nas suas condições. Estudou em um colégio de freiras de uma cidade mais adiantada, hospedada na casa de uma tia que não tinha filhos. Era sua segunda mãe.
          Foi depois de formada, quando voltou à sua cidadezinha para ensinar, que ela começou a perder terreno na corrida contra Láquesis. O cotidiano não a satisfazia. Ela tinha energia demais, alegria demais. Mais do que o espírito retrógrado daquele povo aceitava. E, no primeiro obstáculo da corrida, ela se viu no chão, ouvindo os apupos da platéia. Mas era jovem, saudável, valente. Levantou-se e reencetou a corrida. Os obstáculos seguintes foram vencidos, mas com dificuldade. E Láquesis, a cada novo obstáculo que se oferecia, tinha mais certeza da vitória antecipada.
          Mas houve um momento em que a terceira das Meras pediu tempo. Aparecera um ingrediente novo, o amor, que fez a adversária tomar novo alento. E Láquesis guardou sua tesoura, recuou e se fez de morta – sem intenção de trocadilho. Ficou quieta no seu canto, correndo por fora. E esperou.
          E nessa etapa da corrida, a jovem se viu solta, vencendo com facilidade todos os obstáculos. E cantou mais, e sorriu mais, e seu canto de uirapuru parecia mais melodioso. De repente, um tropeço, que não chegou nem a ser uma queda, mas que foi o suficiente para mostrar à adversária que o ritmo da competição não estava garantido. E Láquesis voltou à pista de corrida, mais descansada, mais repousada, achando que poderia prever para breve o desfecho da competição. Um novo tropeço e, dessa vez, o tombo foi feio. O noivo, que já vinha mostrando certo desinteresse, escreveu-lhe uma carta – nesse tempo as ligações telefônicas eram precárias – desfazendo o compromisso.
          Período cruel – desassossego, angústia, tristeza, mágoa. Seu desempenho na corrida foi desastroso. Entrava na pista às vezes bêbada, às vezes tonta, às vezes, sem forças. A adversária foi ganhando terreno. E de repente teve certeza de que a corrida terminaria mais cedo do que pensara. E ela seria a vitoriosa. Bem, a vitória final era sempre dela, mas muitas vezes com dificuldade, muita dificuldade. O adversário resistia o quanto podia, e ela tinha a impressão de que seria derrotada, embora uma derrota final sua contrariasse as leis naturais. Pois as Meras encarnam uma norma que os próprios deuses não se permitem transgredir, pois isso poria em perigo o equilíbrio do mundo. Nenhuma divindade pode levar ajuda a um mortal, na pista de corrida, quando a sua hora se aproxima.
          Na reta de chegada, um obstáculo dificílimo, quase intransponível. Foi aí que Láquesis tirou o uniforme da corrida e vestiu-se de negro. Uma doença terrível, cujo nome os homens evitam pronunciar, atacou a adversária. A doença de que não se deve dizer o nome apareceu em forma de um caroço no pescoço e, depois, instalou-se no pulmão. A adversária pediu tempo e foi tratar-se na capital. Não, dizia ela, não desisti da corrida, vou voltar e aí reiniciaremos.
          Começou o tratamento, que a deixava fraca, sem defesas e, principalmente, sem ânimo para lutar pela vitória. Láquesis, como era sua obrigação, acompanhou-a, mas ficou no seu canto, sem interferir. Havia dias em que a situação piorava, e ela tirava a tesoura ritualística do bolso e a punha em cima da mesinha de cabeceira da doente. Quando havia uma melhora, ela recolhia a tesoura ao bolso.
          O dia amanhecera nublado. Mais nublado, no entanto, estava o coração da doente. Chamou a acompanhante e pediu para tomar um banho: Vai ser hoje! A Mera examinou seus olhos, tomou-lhe o pulso e percebeu que seria naquele dia mesmo.
          Findo o banho, ela deitou-se. Láquesis aproximou sua cadeira e pôs a tesoura na borda da cama. Depois, tirou o fio que suas irmãs haviam tecido e enrolado. A doente, em seu delírio definitivo, viu-se na reta final da pista de corrida. Poucos metros para a fita de chegada. Foi quando ela viu a adversária passar-lhe na frente, pegar uma tesoura e cortar o fio de uma meada que conservava nas mãos. Era o fio de sua vida.
          Quando a enfermeira entrou no quarto, chamada pela acompanhante, Láquesis estava saindo. Ninguém nunca pensou, nem mesmo ela, que a doente perdesse a corrida tão cedo. Do lado de fora da janela, pousou, no momento exato em que a Mera fechou a porta do quarto, um bem-te-vi cantador, que emprestou um fundo musical para a viagem que a adversária vencida começava naquele instante.










Em voo rasante


(Vicência Jaguaribe)


E flutuou no ar como se fosse um pássaro.
(Chico Buarque de Holanda. Construção.)




        Subiu ao último andar do prédio, onde havia uma ampla plataforma protegida por uma grade. Dela se descortinava, em todas as direções, uma bela vista da cidade. Mas era principalmente a parte da plataforma que dava para o mar que tirava o fôlego. Ali, olhando a imensidão das águas, todo mundo necessitava de um momento de recolhimento. Até as crianças eram envolvidas pelo êxtase e aquietavam-se por alguns segundos.
        Ele já fora ali com a mulher e os filhos, pequenos. Já fora outras vezes, acompanhado e desacompanhado. Agora voltava sozinho, para pensar nos problemas. Analisar os últimos acontecimentos de sua vida.
        No elevador encontrara uma amiga da mulher, dos tempos do colégio, que há muito não via e que indagara pela Dolores. A Dolores está bem, mentiu. E, sem que ela perguntasse, dissera que estava indo ao escritório do advogado resolver uns problemas. Ela descera no vigésimo andar, e ele seguira em frente. Em frente? Não. Subira. Por que pensara em frente? Porque, na verdade, a terra chã é que é o habitat natural do homem.
        Sobre o que precisava refletir? Eram tantos os problemas que ele não sabia como se livrar deles. Eles se entrelaçavam, formando um único corpo disposto a arrastá-lo para o abismo. Sentia-se como se estivesse sendo envolvido pelos tentáculos de um polvo ou pelo abraço de uma sucuri. Com um ou com outro sentiu-se perdido.
        Finalmente, a porta do elevador abriu-se e ele se sentiu confortável com a brisa que soprava do mar, amenizando o calor que há meses castigava a cidade. E sentiu-se confortado com a beleza que se derramava lá embaixo.
        Que acontecera com ele nos últimos tempos, para deixá-lo naquele estado de desespero? Era a pergunta que se fazia e que só ele mesmo poderia responder. E, dentro da cabeça, escutou a própria voz como se estivesse representando um monólogo em cima de um palco.
         Sabia que tudo começara na festa dos vinte e cinco anos – Bodas de que mesmo? Sei lá. Também não importa. – do casamento de um amigo. Fora só. A mulher estava acamada com a virose do momento. E ele a conhecera. Muito jovem ainda. Com um copo de uísque na mão e envolvida por aquele ar de mistério que deixa qualquer homem louco. Uma amiga do sul, apresentou-me a anfitriã, e não acrescentou mais nada. Dançamos a noite toda e marcamos um encontro para o dia seguinte. Disse chamar-se Lucíola. Àquele nome, reagi com um entusiasmo disfarçado. Parecia ter entrado no mundo paralelo da literatura, parecia haver sido transportado para o território da fantasia. Lucíola – cochichou-me meu pedaço romântico – é o título da obra de José de Alencar que conta o envolvimento amoroso do jovem Paulo, originário do interior, com Lúcia, uma prostituta de luxo da capital. De repente eu deixara de ser eu. Vestira a pele do Paulo.
        Acontece que a minha Lucíola não era nem de longe parecida com a Lúcia, que, apesar de prostituta, era virgem de sentimentos. A minha Lucíola era uma máquina de consumir dinheiro, mas minha paixão por ela não me deixou ver o perigo que morava ali. Não abandonei minha família e fui morar com ela, para salvar as aparências. Mas minha relação com minha mulher e filhos esfacelou-se. Um certo dia, quando eu não tinha mais nada que pudesse levar, ela anoiteceu e não amanheceu a meu lado. A essas alturas, já havia perdido quase todo o patrimônio que levara a vida inteira para amealhar. Os credores já batiam a minha porta. Ontem, minha mulher saiu de casa com os nossos filhos.
        Quando ouviu a si mesmo pronunciar a última palavra, a visão do mar ao pôr-do-sol embriagou-o. Aproximou-se da grade de proteção e fixou o olhar na mancha de sangue em que mergulhava o sol, antes de ser tragado pelas águas.
        Num impulso repentino, escalou a grade de proteção. Sentiu que não merecia ser brindado com a aquarela que se descortinava a sua frente. Quando as outras pessoas que se espalhavam pelos quatro cantos da plataforma perceberam o que acontecia, embevecido e dominado pela embriaguez das alturas, o pássaro já se havia atirado de asas abertas. 
         Um pássaro que se lançara em voo rasante, mas que, na última hora, perdera as forças para ascender, e posara violentamnete no asfalto. Por muito pouco não aterrissa na coberta de um carro de cujo rádio se ouviam versos de Chico Buarque: E tropeçou no céu como se fosse um bêbado / E flutuou no ar como se fosse um pássaro / E se acabou no chão feito um pacote flácido / Agonizou no meio do passeio público / Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.





Pigmalião sem Galateia


(Vicência Jaguaribe)




        A resposta veio seca. Seca como o ar daquela maldita cidade. Eu ainda gosto de você. Mas não podemos continuar juntos. Vamos acabar nos odiando. Quando articulou a última palavra, lembrou-se do que ouvira no rádio do carro: a umidade relativa do ar, naquele dia, era a mais baixa dos últimos trinta anos. Bem que já acordara sentindo o nariz sangrar. No banheiro, quando viu o rosto sujo de sangue, amaldiçoou mil vezes o dia em que tivera a ideia de submeter-se ao concurso que a obrigara a morar ali.
        Nascera e criara-se no Nordeste e não se acostumava com aquele clima. Sentia a nostalgia do mar e a falta da brisa da sua terra. Que diabos tinha JK na cabeça quando inventou aquela cidade!? Tudo ali lhe soava artificial. Até a famosa falta de esquinas gritava essa artificialidade. Onde já se viu uma cidade sem esquinas? Uma cidade sem um centro? Uma cidade onde as pessoas não podiam dizer Eu vou ao centro, hein, onde já se viu? Aquela era uma cidade sem alma, sem coração, sem paixão. Parecia-lhe que os habitantes daquele pedaço de chão não lançavam raízes ali. Davam a impressão de árvores transplantadas. Estavam todos de passagem. Era isso o que ela sentia. Talvez essa sensação decorresse do fato de só ter contato com forasteiros assim como ela – pessoas que saíram de seus estados para assumir um emprego na cidade que um dia foi conhecida como a Novacap e só tinham um sonho: voltar para casa.
        O namorado também era de outro estado, do Sul. Tinham-se aproximado no primeiro dia e, seis meses depois, moravam juntos. Eles se gostavam, sentiam-se atraídos. Mas eram duas cabeças situadas em polos opostos, e a convivência mostrou que aquelas duas cabeças eram não só opostas, mas incompatíveis. Que pretendia ele? Moldá-la à sua imagem e semelhança, como um deus? Ou modelá-la a cinzel, de acordo com seu gosto, com suas preferências? Ele poderia até ter o espírito de Pigmalião, mas ela não seria sua Galateia, de jeito nenhum. Aliás, sempre pensara que, no fundo, todo homem tem um pouco de Pigmalião. Todo homem tem vontade de manipular a mulher – de esculpi-la de acordo com seus parâmetros, para melhor dominá-la. Só que, às vezes, a mulher se nega a ser uma Galateia. Ele implicava com seu modo de ser, com sua espontaneidade, com sua extroversão. Olhava-a com a cara feia quando a via despedir-se dos colegas de repartição com beijinhos e abraços. Implicava com suas roupas, com seu estilo despojado, que, para ele, era desleixado.
        Melindrou-se quando ela insinuou que ele havia-se separado da primeira mulher porque ela não se submetera aos seus caprichos, não se dobrara à sua sanha de adestrador. Pois ela também não se submeteria, não. Afinal, ele queria mesmo era transformá-la, descaracterizá-la, despersonalizá-la. E ela sabia que nenhuma relação, nenhum sentimento poderiam justificar ou compensar a descaracterização de uma pessoa. Assim, era melhor a separação.
        Ouviu-o pronunciar seu nome e retornou à realidade. Ele não tentou dissuadi-la. Disse-lhe que, apesar de amá-la, reconhecia a impossibilidade de continuarem juntos. Ela era como o sol de sua terra. Expunha-se e entregava-se sem pudor. Era alegre e sem restrições. Como o mar que banhava seu estado, avançava e desprezava os obstáculos. Ela era a própria ressaca. Ele, não, era meio macambúzio como os dias sem sol de sua terra. Vestia-se sempre com um sobretudo, como se estivesse resguardando-se do frio e da garoa de sua cidade. Ela ostentava um temperamento dionisíaco – tinha a natureza agitada, arrebatada, instintiva; comportava-se com desinibição e espontaneidade. Ele exibia um temperamento apolíneo – comportava-se com sobriedade, equilíbrio, disciplina, comedimento. Era melhor mesmo que se separassem. Continuariam amigos e deixariam o tempo passar. Um dia, talvez...
        Apanhou a mala onde ela já havia arrumado sua roupa e dirigiu-se à porta. Antes de abri-la, porém, pôs a mala no chão, retornou ao lugar onde ela ficara e abraçou-a fortemente.
        No dia seguinte, quando ela chegou à repartição, cumprimentou-o com um abraço, como sempre fazia com os outros colegas. Abraço que ele retribuiu com delicadeza, mas com certo constrangimento.





Fugindo pela janela


(Vicência Jaguaribe)




        Era meio dia. A cidade inteira modorrava ao sabor do mormaço e do calor. O vento que soprava parecia o vapor expelido por um caldeirão gigante em ebulição. E pior: vinha acompanhado pela poeira, que penetrava nas casas e lançava-se sobre corpos e objetos.
        O casarão assobradado de esquina, que ficava na rua principal da cidade, conservava as portas fechadas e as venezianas das janelas abaixadas da metade para baixo. Um silêncio pesado descera sobre a casa. Ali não havia mais criança para perturbar a sesta dos adultos, e a rua, naquele começo de tarde, estava excepcionalmente quieta – nenhum carro, nenhuma moto, nenhum animal ou pessoa quebravam a quietude do horário.
        Do outro lado da cidade, em uma das ruas da periferia, acabara de ser cometido um crime passional – o marido, que encontrara a mulher com o amante na própria cama, pusera-o para correr e desfechara, nela, dois tiros à queima-roupa.
        Os dois disparos acordaram os vizinhos que sesteavam embalados pelo calor e pela preguiça. Quando o primeiro vizinho saiu à calçada para tentar descobrir a procedência dos tiros, o assassino abriu a porta da casa. Quase esbarra no vizinho, que se assustou com o seu aspecto transtornado. Naquele momento, outras portas se abriram e mais pessoas enfrentaram o sol, cujas reverberações faziam pensar que as construções e o solo se mexiam.
        Quando viu que os vizinhos tinham sido alertados pelos tiros, o homem, de um salto, ganhou o meio da rua e iniciou a corrida que o levaria à rua principal da cidade. Tinha que esconder-se para livrar o flagrante. Não queria nem devia ser preso. Cometera um ato de vindita. Lavara sua honra, e contra isso ninguém poderia dizer nada.
        Esbarrou no casarão da esquina, o qual continuava de portas fechadas. Fechadas, sim, mas não trancadas. Foi o que constatou o assassino, quando moveu o trinco de uma das portas, que cedeu. Ele, então, entrou, sem fazer barulho. Aquele casarão tinha um sobrado que, segundo lhe disseram, era pouco usado pela família. Se ele conseguisse subir a escada sem fazer barulho, se ninguém percebesse sua presença, ficaria escondido lá em cima e escaparia à noite.
        Subiu a escada íngreme, cujos degraus, de cimento, não fizeram zoada. Mas o piso lá de cima era de tábua. Ele teria que pisar com cuidado, pois qualquer descuido provocaria barulho suficiente para tirar da sesta o mais sonolento dos homens. Como ele pôde constatar, aquela parte do casarão era pouco usada. As janelas estavam fechadas, e ele percebeu que o assoalho tinha uma fina camada de poeira a denunciar que não fora visitado por nenhum pé.
        O homem sentou-se em um recanto invisível aos olhos de quem, por acaso, subisse a escada. Estava exausto, molhado de suor. Tirou a camisa e escorou-se na parede. Dali a alguns minutos, adormeceu. Acordou com o movimento do térreo. A família toda estava de pé e já tomara conhecimento do ocorrido. O dono da casa – o Prefeito da cidade – trocou-se e foi para a prefeitura – queria falar com o delegado para saber os pormenores do crime.
        Um crime... um crime naquela cidade era algo incomum. Ali só se morria por morte morrida. Quase nunca por morte matada. A população estava excitada. Muita gente nas calçadas, conversando e dando palpites: - O criminoso ainda deve estar na cidade. Escondido em algum lugar. - Não, a esta altura já deve estar longe. - Talvez algum amigo o tenha ajudado a fugir. - Talvez tenha ido esconder-se na casa do pai, no Rancho do Povo.
        No alto do sobrado, o assassino decidia o que fazer. Vira uma janelinha cujo parapeito era rente com o telhado da casa vizinha. Fugir por ali seria moleza. Era ter paciência e esperar a noite cair e a cidade recolher-se. Nada de afobação, para não pôr tudo a perder.
        Percebeu quando o Prefeito chegou à tardinha, e ouviu quando ele relatou à mulher os boatos que corriam na cidade. Era opinião unânime que o homem não estava na cidade. O delegado já fora até a casa do pai dele. O velho passara mal quando soubera da sandice do filho. O delegado suspendera a busca. Na manhã seguinte, a retomaria, embora achasse ser tempo perdido.
        O homem sentiu fome. Lembrou-se de que tinha uma barra de chocolate no bolso da calça. Comprara para a filha, mas não chegara a vê-la. Comeu o chocolate e sentiu sede. Precisava controlar-se. Ali em cima não tinha como arranjar água. Nem banheiro havia. Deitou-se no chão e adormeceu. Quando acordou, percebeu já passar da meia noite. A cidade estava em silêncio. Só se ouvia o barulho do vento, que vinha das bandas do mar e refrescava a cidade. O Aracati! Chegava mais ou menos às três horas da tarde, trazendo alívio à população. Levantou-se, vestiu a camisa e abriu, com muito cuidado, a janelinha. Sem nenhuma dificuldade, passou para o telhado vizinho, do qual desceu umas dez casas adiante, pulando para a outra rua. Ninguém nas calçadas. Tomou o rumo da CE, mas não subiu para a estrada. Foi caminhando pelo meio do mato, até o entroncamento com a BR, onde pegou uma carona. Nem mesmo ele sabia aonde iria dar com os costados.
        Pela manhã, a dona da casa ouviu uma pancada no alto do sobrado. Subiu e fechou a janelinha. Já dissera que não se devia deixar aquela janela aberta. Era um perigo. Algum malfeitor poderia, caminhando pelos telhados, penetrar no sobrado. Iria mandar botar nela uma grade de ferro, antes que acontecesse algo assim.




Com o mundo nas mãos


(Vicência Jaguaribe)



        O colégio lhe dava náuseas. Dentro daquelas paredes sombrias, ela sentia-se em um planeta desconhecido. Vinda do interior, falava outra língua, comportava-se de maneira diferente. Divergia das outras garotas no gosto e no andar. Era ela uma alienígena naquele viveiro de meninas ricas e pretensiosas, aparadas pelas freiras. Um dia, porém, encontrou algo que lhe daria a sensação de estar em um ambiente amigo. Foi na manhã em que chegou mais cedo e descobriu (viu, não, que ver já devia ter visto antes) um armário comprido e largo, encostado na parede dos fundos da sala. Abriu a porta e o mistério revelou-se a seus olhos maravilhados. Aquele armário estava cheinho de livros que ela ainda não lera. Quando entrou na sala, a professora – a Madre Almeida, ainda se lembra – surpreendeu-se com seu ar de encantamento. Pôs-lhe a mão no ombro e, pela primeira vez, ouviu-lhe a voz: - Madre, de quem são esses livros? Admirada com a ignorância da menina sobre as coisas do colégio, respondeu com um meio sorriso: - São de vocês. Vocês podem emprestá-los para ler em casa. Quer levar um? Os olhos da menina brilharam, e ela assentiu com a cabeça. Quando segurou o objeto encantado, sentiu uma leve comichão nas mãos, que ganharam vida independente e quiseram, de imediato, passar aquelas páginas que guardavam um mundo mágico. Foi fogo para a menina controlá-las. Em casa, quando se deitou no sofá e começou a ler as primeiras linhas de Os desastres de Sofia, de Madame de Segür, teve uma certeza. Foi aí que achou valer a pena enfrentar aquele colégio odiado, suportar seus professores intoleráveis e aguentar suas alunas riquinhas e orgulhosas.



Rastros de vida

(Vicência Jaguaribe)

        Quando a menina voltou da escola, o deslizamento soterrara a casa, roubando-lhe os pais. Somente a parede da frente estava de pé, como a inaugurar uma esperança. Ela abriu a porta e divisou rastros de vida no cenário da morte – o gatinho Mimi, presente dos pais no último Natal, pulou em seus braços; o vermelho do antúrio feriu sua pupila, desafiando a monotonia do barro, que se amontoava ao redor.



Depois, o silêncio


(Vicência Jaguaribe)



        Um leve estremecimento. A mulher olhou para o acompanhante. Não tinha nenhuma experiência com tremores de terra. O homem, que já vivera aquele inferno, devolveu o olhar interrogativo da mulher com um olhar de terror. Não tentaram proteger-se. Nem havia como proteger-se. O mundo vinha abaixo. O mundo caía sobre eles. A mulher não pensou nem nos filhos nem nos netos. A figura do irmão interpôs-se-lhe na mente. A figura do irmão, rodeado por pequenas silhuetas escuras, estendendo-lhe, a ela, os bracinhos raquíticos. Mas ela não teve tempo nem condições de socorrê-las. E estava ali, naquele país, na tentativa de ajudá-las. Um grande buraco abriu-se sob seus pés. A última coisa de que teve consciência foi do som ensurdecedor de um trovão apocalíptico. Depois, o silêncio. O mais completo silêncio.




Por um saco de pipocas


(Vicência Jaguaribe)


Uni, duni, tê,
Salamê, minguê.
O sorvete é colorê,
O escolhido foi você!

        As três meninas cantavam os versos da parlenda, batendo nas mãos umas das outras. Ele aproximou-se, escolheu uma delas e fixou-lhe o olhar – a mais novinha das três, de pele clara e cabelos louros. Não tinha mais do que cinco anos. Falou-lhe baixinho: Você quer pipoca? Ela sorriu e virou-se para as amiguinhas: Eu volto já! Foi com ele à banca das pipocas, na calçada em frente. Recebeu de suas mãos o saco quentinho. Ele abaixou-se, soprou-lhe algumas palavras no ouvido. Ela aquiesceu. Ele pegou-a nos braços e fez sinal para o ônibus que passava. As pessoas que estavam por perto não viram nada; se viram, não acharam estranho; se acharam, não quiseram intrometer-se. 24 horas depois, seu corpinho sem vida e com indícios de estupro foi encontrado no meio de um matagal.





Por entre brumas


(Vicência Jaguaribe)


Acabou-se o combate.
Para ela já não haverá lágrimas,
nem prantos, nem sobressaltos.
(Ignácio Larrañaga)



        O marido entra no quarto e abre a cortina. Ela puxa o lençol e cobre a cabeça.
        - Como amanheceu, querida? Dormiu bem?
        Ela olha para o homem, posicionado contra o sol, que entra pela janela. O que vê são raios luminosos projetando-se de uma figura que ela não sabe o que é, e sente medo. A figura desloca-se e aproxima-se da cama. Ela percebe que é um homem, mas não sabe quem é. Faz uma cara de susto e recua na cama.
        - Sou eu, Júlia, o Hugo. Trouxe o seu mingau.
        Ela toma todo o mingau que ele lhe dá a colheradas. De vez em quando, olha para o homem com o olhar meio temeroso e, quando ingere a última colherada do alimento, encolhe-se e cobre-se da cabeça aos pés. O homem olha aquela trouxinha branca em cima da cama, ensaia um carinho, mas desiste. E sai do quarto deixando a porta aberta. Há muito renunciara às tentativas de trazer a mulher à realidade. Às vezes, tinha a impressão de que ela o reconhecia, queria falar-lhe, mas era uma impressão de minutos ou até de segundos. Logo ela se recolhia ao seu mundo especial, ao qual ninguém tinha acesso.
        Mal o marido deixa o aposento, ela tira o lençol do rosto. Em sua cabeça, os fatos e as pessoas se misturam, e ela não consegue situar-se nem em relação a eles nem a ela mesma. Aquele homem que acabara de sair, por exemplo, não sabe quem é. Às vezes, tinha a impressão de que o conhecia; outras vezes, tinha medo dele. Mas ele estava sempre ali, com ela. Aquelas mãos que lhe davam comida, que a banhavam, que a penteavam... ela as reconhecia. De repente, uma imagem clara aparece em sua mente – aquelas mesmas mãos, só um pouco mais novas, seguravam uma de suas mãos e lhe punham um anel. Ela sorria, feliz. Mas ao seu lado aparecia a imagem de outro homem! E ela tem medo, e as imagens tornam a embaralhar-se, e ela volta a encolher-se em cima da cama.
        O marido termina de vesti-la e penteia-lhe os cabelos molhados. Enche-a daquela colônia suave, sua preferida, e tenta conversar. Ela não faz a cara de medo que tanto o entristece, mas também não diz nada. Ele precisa sair, e a nora ficará de plantão. Dá-lhe um beijo na testa, encosta uma cadeira na porta. Faz-lhe um aceno.
        Um outro clarão em sua mente... o outro homem a tomava nos braços e a beijava. Como era o nome dele? De repente ela o via de braços dados com uma outra mulher, segurando a mão de uma criança. Aquela mulher... aquela mulher... sim, era irmã do outro, aquele que lhe dera uma aliança. E ela tem medo, e encolhe-se na cama. Mas, desta vez, as imagens não voltam a embaralhar-se. E a mente teima em enviar-lhe outras imagens que ela parece entender – ela, feliz, na cama com o homem estranho. Não! Não! Por que essas lembranças agora!
        Deve ter gritado, porque a nora sobe as escadas correndo.
        - O que foi, dona Júlia? Está sentindo alguma coisa?
        A resposta vem em forma de um esgar, seguido de um gesto com os braços, como se quisesse impedir a nora de se aproximar.
        Quando fica novamente sozinha, um outro clarão – a porta do quarto onde ela se encontrava com o homem se abriu, e a mulher que estava de braços com ele entrou. E aí, na sua cabeça, as imagens e os fatos se clarificam: a mulher era irmã de seu marido e esposa do homem que... O medo vem forte, e as lembranças se vão, deixando-a novamente naquele vazio, que talvez seja para ela uma bênção.
        O marido veste-lhe uma camisola limpa, muda os lençóis e arruma-a para dormir, depois de lhe dar o sonífero. Afaga-lhe os cabelos, desliga a luz principal do quarto e deixa acesa apenas a pequena lâmpada do abajur. Retira-se para o seu quarto, que tem com o da mulher uma porta de correspondência. Aquele olhar que ela, às vezes, como há instantes, lança-lhe – olhar de dor, de súplica... chegava até a pensar... de pedido de perdão – leva-o ao passado, a fatos nunca explicados, a suspeitas nunca confirmadas. Basta! Que adianta desenterrar defunto? Ele já morreu, e ela está praticamente morta!
        A mulher fecha os olhos e tenta dormir... os clarões na mente, no entanto, reaparecem. Ela comprime os olhos fechados, enrola a cabeça. Em vão! As lembranças chegam, claras, em forma de relâmpagos e impõem-se sem lhe dar nenhuma chance de apagá-las. O olhar reprovador das cunhadas, que ela recebia com um sorriso de ironia! Os cuidados da sogra, para que o filho não desconfiasse, a que ela respondia com gargalhadas! A dor e o desespero controlado da cunhada traída, que ela devolvia com demonstrações de alegria! E o marido, apaixonado desde o primeiro dia, na sua santa ignorância, ou no oportuno faz de conta que não sei! E os relâmpagos se sucedem vertiginosamente, até que ela não suporta mais e grita.
        O marido, na porta do apartamento, ouve o diagnóstico: enfarto no miocárdio; é questão de horas. Fecha a porta e senta-se na cadeira ao lado da cama. Pega a mão da mulher e, entre triste e aliviado, espera.








O Padre



(Vicência Jaguaribe)


[...] há eunucos que o são desde o ventre de suas mães,
há eunucos tornados tais pelas mãos dos homens
e há eunucos que a si mesmos se fizeram eunucos
por amor do Reino dos céus.
Quem puder compreender, compreenda.
(Mateus, 19,12.)



        O padre assistira ao jornal da noite e fora ao gabinete organizar uns papéis. Ao dirigir-se ao quarto, passou pela cozinha, onde a Maria terminava de fechar a porta que dava para o quintal, e lhe fez um sinal discreto. Ela sorriu. Sabia o que significava aquele sinal. Tomara o banho da noite e, de seu corpo, rescendia um odor de limpeza.
        Já entrando na meia idade, o vigário envergonhava-se daquela situação. Era um bom sacerdote, trabalhador, piedoso, mas nunca se conformara com o celibato. No início, achava que pudesse controlar os instintos, mas não passou da intenção. E não ter força para dominar-se constituía para ele um drama de consciência cujas proporções só ele mesmo poderia avaliar. Nunca se aproximara das jovens de família – expressão que ele só tinha coragem de usar para si próprio –, mas aproveitava-se das empregadas, das moças simples dos vilarejos. Verdade que nunca forçara nenhuma delas. Todas iam por livre vontade. Sabia que era um homem atraente, que nunca tivera dificuldade em levar uma mulher para a cama. E isso aumentava sua crise de consciência. Era como se ele estivesse aproveitando-se de um presente divino, para desvirtuar aquelas mulheres. Caso lhe perguntassem se ele gostaria de deixar a Igreja e casar, responderia que não. Orgulhava-se de ser reconhecido como um ministro do Senhor. Gostava de pensar que era um intermediário entre Deus e os homens. Amava o ritual da Igreja Católica. Não. Nunca pensara em deixar a Igreja. Se não fosse a exigência da castidade, ele seria o homem mais feliz do mundo vivendo como padre.
        A Maria servia-o, desde que ele se instalara naquela paróquia. Era uma mulher nova, de formas exuberantes, sem ser gorda. O padre trouxera consigo a mãe, de modo que ninguém falou nada quando ele contratou aquela cabocla bonita para trabalhar em sua casa. A figura da mãe impunha respeito e evitava qualquer comentário maldoso – pensamentos... bem, esses, ninguém pode evitar. Durante o dia, a Maria conservava o semblante fechado de modo que as pessoas que frequentavam a casa paroquial a respeitavam como se ela fosse a patroa. À noite, porém, quando a velha senhora se recolhia e ela atendia ao pedido do padre, indo ao seu quarto, revelava-se outra mulher. Era um verdadeiro vulcão de sensualidade. Levava o vigário ao delírio. E ele jamais tivera nos braços uma mulher como aquela.
        A mulher nunca avaliara os sentimentos que experimentava pelo padre – ela o via, pode-se dizer, como um centauro, embora não tivesse consciência disso: metade homem, metade sacerdote, ou ainda, metade sagrado, metade profano. Já tivera muitos outros homens. E gostava de estar com eles. Era uma mulher fogosa, que não sabia viver sem sexo. Mas com o padre sentia-se diferente. Não era só o ato sexual em si que a deixava feliz. Era a maneira como ele a tratava – sua delicadeza; o respeito que demonstrava por ela; as palavras bonitas que lhe dizia. Tudo muito diferente do que ela experimentava com os outros homens – rústicos e grosseiros. Mas não era só isso. Para ela, havia algo de sagrado naquela sua relação com um representante de Deus na terra. Sentia como se estivesse mais perto do Altíssimo, quando se deitava com o seu padre. Ao contrário do vigário, não sofria nenhum drama de consciência com aquela situação. Nada de pecado. Nada de remorso.
        Naquela noite, quando entrou no quarto do vigário, encontrou-o ajoelhado, rezando. Em silêncio, esperou que ele terminasse as orações. Chovia muito e fazia frio, e ele havia fechado as venezianas. Quando ele se aproximou, ela estremeceu, numa mistura de excitação e de frio. Deitaram-se. A chuva havia aumentado. Ouviam-se os trovões e via-se o clarão dos relâmpagos. Ele persignou-se e abraçou-a. Naquele exato momento, um raio cortou a escuridão e desabou sobre a casa paroquial, atingindo exatamente o quarto do padre e deixando um sinal visível, uma rachadura que descia até o chão.
        Como foram diferentes os sentimentos experimentados pelos dois! A Maria sentiu medo do fenômeno natural, que poderia ter matado os dois. Teve medo, como tinha de um trovão, de uma forte chuva, de uma enchente. O mesmo medo que experimentaria de um terremoto ou da erupção de um vulcão, se morasse em uma região onde esses fenômenos acontecessem. A Maria era simplória demais para elucubrações de ordem moral ou religiosa. Instintiva demais, para ver em um ato comandado pelos instintos algo de ruim, de pecaminoso. O padre, não. Ao invés de ter medo do fenômeno da natureza, temeu a cólera de Deus. Para ele, aquele era o raio divino enviado para castigá-lo ou para adverti-lo do pecado que estava cometendo. E deitou-se no chão, como fizera na cerimônia de ordenação, e pediu perdão pelo enorme pecado que cometia sistematicamente. E ali mesmo, com a testa pressionada no frio do assoalho, fez a promessa que daria outro rumo à sua vida – prometeu que nunca mais teria uma mulher.
        A partir daquele dia, se alguém entrasse no quarto minutos antes de o padre deitar-se, presenciaria uma cena inimaginável nos tempos modernos – ele, retirando o cilício da cintura e com ele castigando mais ainda o próprio corpo, até que sangrasse, e a dor física fosse mais forte do que o desejo.



Quem sai de sua terra...



(Vicência Jaguaribe)


Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.

(Carlos Drummond de Andrade. “A ilusão do migrante”.)




        Já era mais de meia-noite quando ele atravessou a cidadezinha adormecida. A usina, milagrosamente, funcionava, e precários bicos de luz faziam de conta que alumiavam as calçadas. Passou em frente à casa da mãe e só fez olhar. O companheiro de trabalho, que dirigia o carro, nem notou seu olhar mais demorado para aquele casarão em frente à pracinha. Também não sabia que ele nascera ali, naquela cidade que mais parecia um povoado. Aliás, nem ele nem ninguém que trabalhava com aquele gigante branco de olhos azuis sabia alguma coisa de sua vida. Sujeito estranho! Falava quase nada. Parecia que não tinha passado, que nascera do acaso. Pai, mãe, irmãos, família, enfim, parecia não ter. Mas, tirando essa esquisitice, era gente boa, prestativa.
        Poderia ter parado para ver a mãe e os irmãos. O pai já se fora. Mas para que parar e chegar só de passagem? Era melhor continuar sem mandar notícia como se já não estivesse vivo. Será que a velha sentia a sua falta? Ela era meio esquisita, assim que nem ele. Mas lembrava-se de como ela sofrera quando morrera o filho caçula, um rapaz de dezoito anos. Depois, ele fora embora. Fora embora para fugir do ambiente sufocante daquela cidadezinha, da qual nada se podia esperar. Que trabalho teria condições de fazer ali? Lavrar a terra? Mas que terra, se a família era pobre? O pai era comerciante, mas, antes de morrer, fora à falência. A mãe é que assumira o sustento da família, servindo almoço e, depois, hospedando quem vinha de fora. Havia, também, a confecção e o comércio de redes, mas era para quem tinha algum capital, e ele não tinha nada. Se tivesse condições, iria estudar e formar-se como um seu meio-irmão, farmacêutico formado e dono da única farmácia da cidade. Mas isso fora no tempo em que o pai era vivo e podia sustentá-lo na capital.
        O carro mal havia passado pela frente do casarão da mãe do Dico – assim o chamavam –, quando o motorista avisou:
        - O pneu furou. Vamos ter que descobrir uma borracharia. Mas como, meu Deus? A esta hora?
        O sujeito esquisito desceu e disse que o amigo ficasse olhando o carro, que ele iria descobrir a borracharia.
        - Mas você nem conhece a cidade!
        - Claro que não! Mas hei de encontrar alguém a quem possa perguntar, não?
        Não gastou mais conversa. Deixou o amigo balançando a cabeça e foi até a esquina, onde dobrou à direita, saindo do seu foco de visão. Sabia, sim, onde havia uma borracharia e conhecia seu dono. Tinham sido companheiros de farra. Andou mais um pouco. Dobrou à esquerda e chegou à borracharia. Sabia que o dono – o João da Bilinda – dormia no próprio trabalho. A não ser que nesses anos tudo houvesse mudado, e o João tivesse casado. Não, não! O Bilinda casar! Só se fosse por castigo. Era o solteiro mais convicto que conhecia.
        Bateu na porta e pensou no susto que o amigo iria tomar. Resolveu amenizar esse susto:
        - Oi, João, é o Dico da Otília.
        A porta abriu-se, e os dois se abraçaram, o João da Bilinda sem acreditar no que via.
        - Ó João, preciso que você vá comigo consertar o pneu de um carro. Mas quero que finja não me conhecer. – E, enquanto caminhavam, os dois iam botando os assuntos em dia.
        - Dico, você já foi à casa de sua mãe?
        - Não! Nem fui nem vou. E não me pergunte por quê. Não saberia explicar.
        Quando pararam junto do carro, a conversa morreu. O borracheiro tirou o pneu, mas teve que levá-lo até a borracharia. Quando recolocou o pneu no carro, recebeu o pagamento e despediu-se dos dois com um simples aperto de mão. Mas esse Dico é esquisito mesmo! Acho que não devo dizer nada à mãe dele. Para não magoá-la mais.
        Enquanto o carro saía da cidade, o motorista olhou o colega e achou-o triste. Seu rosto estava sombrio, e a boca apertava-se em um rito que parecia anunciar lágrimas para breve. Achou melhor não perguntar nada.
        Quando passaram em frente à igreja, o motorista teve a impressão de ver duas lágrimas escorrerem pelo rosto do colega. Mas talvez tivesse sido só impressão. Já ia amanhecendo, e o reflexo avermelhado do sol confunde a visão.
        O companheiro, limpando disfarçadamente o rosto, observou a paisagem sem graça e sem beleza de sua terra. Fora embora, sem ressentimento e sem remorso. Nunca se lembrara daquela cidade nem da família com tristeza. Por que, então, agora sentia vontade de chorar. Sempre ouvira dizer que quem abandona sua terra nunca é feliz, nunca tem sossego. Mas ele mostraria que isso não era verdade. Ia ganhar dinheiro. Ia vencer, como dissera a todos antes de partir. Somente nesse dia poderia voltar à sua cidade e à sua gente sem envergonhar-se.
        No momento em que terminou de engendrar esses pensamentos, ouviu o companheiro, que, parecendo haver penetrado em seus pensamentos, entoava baixinho os versos de “Último pau de arara”: Vou ficando por aqui / Que Deus do céu me ajude / Quem sai da terra natal / em outro canto não para...



 Motus continuus



(Vicência Jaguaribe)



        A velha Senhora se lembrava muito bem do que acontecera naqueles dias. Há quanto tempo? Dez anos? Trinta? Quarenta? Cinquenta? Ela nunca fora mesmo muito boa em contagem de tempo. Mas uma coisa ela recordava muito bem: o tio Elias, um irmão de sua mãe, vivia falando na genialidade do amigo. Era o Mestre Francisco pra cá. Era o Mestre Francisco pra lá. Porque o velho Mestre Francisco era um inventor de primeira! O problema: este era um país que não dava valor aos seus gênios. Não incentivava suas cabeças privilegiadas.
        O Mestre Francisco - o mestre era por conta do tio da velha Senhora, o tio Elias -morava em uma casa velha, já em avançado processo de deterioração. Vivia com duas filhas, já bem entradas na meia idade, e uma neta, órfã de mãe. Todo dia, o tio visitava o amigo, para inteirar-se das novidades do rádio - o mestre gostava de atualizar-se - e das suas mais recentes invenções. Em casa, quando expunha a genialidade da vez, a família olhava-o com desdém e, via de regra, soltava uma piadinha sobre o mestre e seus hábitos de higiene: Mestre! Só se for mestre de sujeira!
        A casa do mestre Francisco não era, realmente, nenhum modelo de higiene e de arrumação. Viam-se animais circulando pelos aposentos; retalhos de pano voando ao sabor do vento, que uma das filhas costurava; cortinas de casas de aranha enfeitando as paredes ou pendendo do teto, o que dava ao ambiente uma atmosfera lúgubre de filme de terror.
        Sim, havia um quintal na casa do mestre Francisco e, no quintal, um quarto e, dentro do quarto, o mistério. O mestre não abria a porta daquele quarto para muitas pessoas. Somente alguns privilegiados tinham o consentimento de lá penetrar. E o tio Elias era um desses poucos. De vez em quando, entrava no quarto do mistério e ficava um tempão lá dentro, observando a quinquilharia de que se servia o mestre para criar suas invenções.
        Ultimamente, o tio Elias mostrava-se mais entusiasmado do que nunca. Sentia-se o orgulho borbulhar em seu corpo, quando falava no mestre Francisco. A exaltação estava quase a afogá-lo, e ele precisava falar. Aproveitou um dia em que almoçavam só ele e a mãe:
        - Mamãe, a nova invenção do mestre Francisco vai revolucionar o mundo. Ele está criando um moto contínuo.
        - E eu sei lá o que é um moto contínuo!
       - Ah! mamãe, é a revolução das revoluções: é uma máquina que funciona indefinidamente sem despender energia, ou que transforma em trabalho a energia recebida.
      - Bom, entender mesmo eu não entendi não. Mas quero dizer três coisinhas: primeiro, tudo o que tem começo tem fim; segundo, se o seu Francisco tá mexendo com isso, é porque já existe alguma coisa sobre isso; ele não ia saber inventar um negócio desses, não; terceiro, se ninguém ainda fez esse tal de motor contínuo não vai ser aquele velho sujo que vai inventar isso.
        O tio ficou calado, porque com aquela velha não se discutia. À tardinha, foi novamente à casa do amigo, mas não pôde falar-lhe. Ele trancara-se no quartinho do fundo do quintal, de onde se ouviam constantes pancadas e, de vez em quando, o ronco de um motor. A comida era levada pelas filhas, que a deixavam na soleira da porta. Elas disseram que o pai não conversava mais com ninguém. Falava sozinho sobre um tal de motor que começara a construir, mas que não estava saindo como ele queria. O tio Elias desceu ao quintal, bateu na porta do quartinho e esperou resposta. Em vez de falar, o velho botou a cabeça para fora. Olhou-o, mas não deu nenhuma reposta às suas perguntas. Nada. O velho fechara-se em copas.
        Pela manhã, quando pisou na calçada, o tio Elias ouviu o boato: o velho Francisco ateara fogo no quartinho dos fundos, onde guardava suas invenções. E desaparecera. Seu corpo não foi achado em meio aos ferros retorcidos e ninguém o viu sair de casa. O fato é que ninguém nunca mais deu notícia. do mestre Francisco, nem naquela cidadezinha nem nas cidades vizinhas. As filhas morreram; anos depois, o amigo se foi também. Algumas outras gerações também cumpriram a sua missão neste mundo e fizeram sua viagem. Nenhuma dessas pessoas viu, antes de morrer, alguém construir aquela máquina maravilhosa - aquela máquina que funcionaria sem parar. Mas quem sabe não foi em uma dessas máquinas, pelo menos em um protótipo delas, que o mestre Francisco fez sua viagem definitiva? Isso ninguém pode afirmar, porque ninguém viu. Mas também não pode negar. Não pode negar pelo mesmo motivo por que não pode afirmar: ninguém viu. E não se pode negar nem afirmar aquilo que não se viu. É isso o que pensa a velha Senhora, quando se lembra daquele episódio, ou quando algum jovem lhe pede para contá-lo.



O mistério colubrino


(Vicência Jaguaribe)



       O menino chegara com os pais. Ninguém sabe de onde. Construíram um rancho na beira da estrada e lá ficaram morando os três, até o casal morrer de picada de cobra. Os dois, no mesmo dia, picados pela mesma cobra, que o menino aprisionou, mas não matou. Ao tomar conhecimento de que o juiz o encaminharia a um orfanato na capital, desapareceu. Só reapareceu quando completou dezoito anos e não havia mais perigo de ser levado para nenhuma casa de órfãos.
       Chamavam-no Sardanha, corruptela de seu sobrenome – Saldanha. Estava lá, na certidão de nascimento. Ele só aparecia na cidade de tempos em tempos. E sempre com uma cobra enlaçada no braço ou no pescoço. Diziam que ele tinha o poder de hipnotizar os ofídios, fossem venenosos ou não. Corria também o boato de que só se alimentava de cobra. Tinha um tipo esquisito: magro, alto, a pele meio amarelada, como se fosse uma constante vítima da icterícia; a pele, áspera e quase sem pelos. Quando andava pela cidade, naquele andar meio coleante, era sempre seguido por uma tropa de crianças, que gritavam atrás dele, como se ele fosse um palhaço. De vez em quando, ele voltava-se e ameaçava soltar a cobra em cima dos meninos, que se dispersavam, para, logo em seguida, reunirem-se de novo e seguirem-no.
       Parava na porta das casas e pedia um dinheirinho. Ninguém tinha coragem de deixá-lo entrar, por causa da cobra. Às vezes, levavam-lhe comida, que ele rejeitava. Daí, surgiu o boato de que ele só se alimentava de cobra, o que não se pode dizer que era verdade nem que era mentira. Andava com as roupas rasgadas, até quase expor as vergonhas, e exalava um odor desagradável, que afastava as pessoas. Às vezes, quando os molambos que o envolviam estavam em situação muito crítica, pedia roupa nas casas.
Raras eram as pessoas que se atreviam a entrar em seu casebre. E essas raras chegavam contando coisas de arrepiar. A casa era cheia de cobras – algumas presas, mas a maioria serpenteando pelo chão, como se fossem animais de estimação, gatos e cachorros, por exemplo. As cobras presas em gaiolas especiais que ele mesmo fabricava eram as mais perigosas, as mais traiçoeiras e venenosas, só libertadas após domesticadas. Algumas pessoas diziam que o Sardanha extraía-lhes o veneno, depois de hipnotizá-las, e sabia a língua delas. Passava horas conversando com os mais perigosos ofídios.
       Certo dia, os sitiantes que moravam nas imediações do barraco do Sardanha começaram a sentir falta de algumas coisas: utensílios de cozinha, baldes e, principalmente, roupas, lençóis e toalhas. Desconfiaram do Sardanha e deram queixa ao delegado, que mandou dois soldados vasculharem a casa do rapaz, onde não encontraram nada. Nenhuma prova que pudesse incriminá-lo. O delegado, então, intimou os queixosos a deixarem o garoto em paz. Mas as coisas continuaram a desaparecer, e os prejudicados decidiram, eles mesmos, resolver a situação. Constituíram uma pequena tropa, armaram-se e bateram à porta do rapaz.
Primeiro intimaram-no a ir embora. Ali não havia lugar para ele. Que desaparecesse com suas cobras e nunca mais voltasse. Disseram que, no dia seguinte, às mesmas horas, estariam ali de novo. O Sardanha não se alterou e não mudou sua rotina. Ficou em casa, como sempre, desfrutando a agradável companhia colubrina. Quando a improvisada tropa de choque chegou e bateu na porta, ninguém atendeu. Reforçaram a batida e nada. Empurraram a porta, e o que viram os estarreceu: dentro da sala, no chão ou em cima de alguns caixotes, uma quantidade de cobras difícil de determinar.
       E quase desmaiaram quando uma das cobras, a maior, de cor amarelada, enroscou-se, ficou em posição de ataque e, num gesto da cabeça, comandou o ataque aos sitiantes. Dos seis, cinco foram picados e morreram quase instantaneamente. O sobrevivente, protegido por um caçuá abandonado a um canto, percebeu que o único modo de escapar era matar o ofídio que comandava o bando. Pegou a espingarda e mirou na cabeça da cobra, que foi atingida. Na mesma hora, as outras recuaram para um canto, de onde não mais saíram. O sitiante, então, voltou o olhar para o lugar onde a cobra atingida tombara. E o que viu o surtou – o ofídio ia, aos poucos, adquirindo ou readquirindo formas humanas. Quando se aproximou, reconheceu – era o Sardanha!
       O sitiante não olhou duas vezes: deixando no chão a espingarda, que escorregara de suas mãos, foi em uma carreira só até a delegacia. Contou o que vira ao delegado que, com os olhos incrédulos e a cabeça maquinando sobre o surto de loucura que aquele pobre diabo estava experimentando, chamou dois soldados e mandou levá-lo a uma cela. Esperava que aquilo fosse um surto passageiro. Tinha pena de mandar um homem honesto e trabalhador para longe da família.
       No dia seguinte, quando as famílias dos sitiantes sentiram-lhes a falta, foram à delegacia dar queixa do sumiço. Dessa vez, o próprio delegado fez questão de ir ao local do suposto crime. A porta da casa do Sardanha estava aberta e seu corpo, atingido por um tiro na cabeça, jazia em uma poça de sangue. Mas onde estavam os cinco sitiantes que as famílias procuravam e que, segundo o preso, tinham sido mortos por picadas de cobras? Reviraram a casa, as redondezas e nada encontraram – nem os supostos assassinados, nem as pretensas cobras assassinas.



Um comentário:

Eduardo Lara Resende disse...

A colcha: belo conto, trama muito bem feita.
Abraço.