Meu presente de Natal é o conto transcrito abaixo. Espero que gostem.
O menino do velocípede
(Vicência Jaguaribe)
Ao menino que teve a sensibilidade
de entender o drama da pobreza.
Manhã de 25 de dezembro de 19... O menininho de pele clara e cabelo aloirado já acordara quando os pais se levantaram. Sentara-se no chão da sala de visitas, perto da árvore de Natal. Com as luzes apagadas, aquele adereço natalino parecia ter perdido o encanto que alimentara a fantasia do menino por quase um mês. Mas é assim mesmo: depois que os presentes são entregues, parece que o simulacro de pinheiro perde sua função. Mas o menino não estava ali pela árvore. O que o prendia naquele recanto era o presente que finalmente ganhara, depois de esperá-lo ansiosamente no aniversário.
Era um velocípede de última geração, com o qual o menino vinha namorando há muito tempo. Bonito e espaçoso, comportava perfeitamente duas crianças da idade dele. Mas o menino não tinha coragem de aproximar-se, de pegar nele, de montá-lo. Só o olhava. Na noite anterior, quando o recebera das mãos do pai, ficara tão embevecido que não vira mais nada nem ninguém naquela sala. O pai pegara-o nos braços e o colocara em cima da pequena máquina. Mas ele não tivera coragem de pedalá-la. Os primos é que deram as primeiras voltas, enquanto ele os olhava.
Agora, pela manhã, parecia que ainda não se libertara do encantamento. O que o arrancou do êxtase foi o barulho das crianças na rua, jogando bola e falando alto. Na certa, exibiam os presentinhos baratos que receberam – se houvessem recebido. Eram crianças pobres os vizinhos do menino. A única família que vivia em melhores condições, naquela rua, era a sua, mas assim mesmo não eram ricos. Digamos que eram remediados. A animação da criançada animou o menino do velocípede. Abriu a porta, desceu devagar os três batentes e puxou com cuidado o brinquedo. Silêncio absoluto na rua. Onde estavam os meninos que há pouco jogavam e gritavam alegres? Quando se virou, viu-os parados e mudos na ponta da calçada, a bola abandonada, sem serventia. Alguns se aproximaram do brinquedo, mas não muito. Mantiveram uma distância respeitosa e cerimoniosa. Nenhum deles teve coragem de tocar no objeto tabu ou de dizer alguma coisa. Quando o menino montou e os olhou, não viu mais os meninos. Viu vários pares de olhos tristes e avermelhados. Parecia que, a qualquer momento, lágrimas rolariam. O menino entendeu? Não sei se entendeu o drama em sua totalidade, mas pedalou devagar e de cabeça baixa, afastando-se daquelas crianças que, talvez, pela primeira vez em suas vidas, sentissem inveja e experimentassem, de verdade, a condição da pobreza.
O menino não chegou ao fim do quarteirão. Pedalou de volta. As outras crianças haviam-se recolhido às suas casas, e a rua estava triste – sem bola, sem gritos, sem risos. O menino empurrou a porta de casa, entrou e puxou o velocípede. Estava triste. Perdera o interesse pelo brinquedo.
Aquela foi a primeira e a última vez que ele levou o velocípede à calçada. O brinquedo ficou guardado no quartinho de despejo, no fundo do quintal.